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“Motoristas de app possuem tanta liberdade quanto um passarinho dentro de uma gaiola”, diz Sol Corrêa 

Solimar Machado Correa
Solimar Machado Correa Foto: Reprodução/Tc Justiça

Sol Corrêa diz que a Uber decide até quais passageiros cada motorista atenderá e que o trabalhador é levado a acreditar que possui autonomia e é “seu próprio chefe”. 

Durante a audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir as condições de trabalho dos motoristas de aplicativos, a advogada trabalhista Solimar Machado Corrêa apresentou uma análise detalhada da precarização enfrentada por esses trabalhadores. Segundo ela, os motoristas estão “invisibilizados por um discurso de inovação”, enquanto enfrentam uma rotina marcada por exploração e falsas promessas de autonomia. “Vivem uma falsa autonomia, limitada por uma suposta liberdade que se assemelha à de um passarinho tentando voar dentro de uma gaiola”, comparou Sol, em uma das passagens mais impactantes de sua fala.

A advogada destacou que, embora diferentes empresas de transporte por aplicativo compartilhem modelos semelhantes, há particularidades em seus procedimentos. Seu foco, no entanto, recaiu sobre a Uber, com base em situações frequentemente vivenciadas no estado do Pará. Ela relembrou seu primeiro contato com a empresa em 2018, ao atender um caso de um motorista bloqueado. “Quando analisamos o contrato entre as partes, percebemos que ele qualificava a Uber como uma prestadora de serviços de tecnologia e os motoristas como ‘parceiros’. Mas os relatos mostravam que essa relação não correspondia nem a de um contratante e muito menos a de um parceiro”, afirmou.

Com o tempo, ficou evidente para Sol que o contrato era uma fraude. “Diversas versões do contrato foram elaboradas e alteradas unilateralmente ao longo dos anos, sem consulta prévia ou negociação com os motoristas”, pontuou. Segundo ela, as cláusulas permitiam que a Uber modificasse os termos a qualquer momento, sem transparência. A advogada mencionou que, mesmo diante de um contrato que negava vínculo empregatício, decisões da Justiça do Trabalho e investigações do Sindicato do Pará evidenciaram que a relação entre a Uber e os motoristas possui características claras de vínculo empregatício de prazo indeterminado.

Essa dependência, explicou Sol, está fundamentada na Lei 13.640/2018, conhecida como “Lei do Uber”, que estabelece que o transporte privado remunerado de passageiros é exclusivo para usuários cadastrados nas plataformas digitais. “Isso demonstra que o motorista não possui carteira própria de clientes e, para operar legalmente, precisa estar vinculado à Uber”, ressaltou. Ela lembrou ainda que realizar transporte fora da plataforma é crime, classificado como transporte ilegal de passageiros.

A advogada detalhou o controle exercido pela empresa por meio de seu algoritmo, que monitora a localização em tempo real, define metas, avalia o desempenho e impõe penalidades. “O algoritmo da Uber estabelece a frequência de execução das tarefas e até a qualidade do trabalho prestado, podendo suspender ou desligar motoristas em caso de descumprimento das ordens”, explicou. Sol comparou essa dinâmica ao mito da caverna de Platão: “Assim como os prisioneiros da caverna, os motoristas são levados a acreditar em uma ilusão de liberdade e autonomia projetada pela Uber, com slogans como ‘seja seu próprio chefe’ ou ‘faça seu próprio horário'”.

Entretanto, segundo a advogada, essa autonomia é ilusória. Ela descreveu práticas da Uber que reforçam a subordinação jurídica. “É a empresa quem define qual passageiro cada motorista atenderá. Mesmo que um passageiro esteja próximo, o aplicativo pode redirecionar para outro motorista, especialmente se o primeiro estiver cumprindo uma ‘missão'”, afirmou, referindo-se às metas estabelecidas pela plataforma. “Essas metas garantem remunerações adicionais, mas também funcionam como mecanismos de manipulação, pois a Uber decide quem poderá ou não cumpri-las.”

Outro ponto citado por Sol foi o controle sobre o tempo e os valores das corridas. “Se um motorista fica preso no trânsito ou enfrenta imprevistos, não há garantia de que a remuneração será recalculada. A Uber decide unilateralmente o que será pago”, declarou. Além disso, a avaliação de desempenho, baseada em dados coletados pela empresa, é pouco transparente. “Os motoristas não têm acesso às avaliações detalhadas dos passageiros, apenas a uma nota consolidada exibida pelo aplicativo”, disse.

A advogada também refutou a ideia de que os motoristas sejam donos de seus próprios negócios. “A verdadeira dona da plataforma é a Uber. Os motoristas estão tão integrados à estrutura digital que as pessoas dizem ‘vou chamar a Uber’, e não ‘vou chamar um motorista'”, observou, citando que tribunais europeus já reconheceram essa integração como um indicativo de vínculo empregatício.

Por fim, Sol mencionou uma declaração do CEO da Uber, publicada pelo Intercept Brasil em 2022, na qual ele afirmou que a empresa “pode fazer qualquer modelo funcionar”, referindo-se à possibilidade de adaptação às regulamentações trabalhistas da União Europeia. “Essa afirmação contradiz o discurso da Uber no Brasil, de que é inviável reconhecer os direitos dos motoristas”, criticou.

Em sua conclusão, a advogada ressaltou que aceitar o modelo atual como autonomia seria perpetuar uma lógica que nega direitos mínimos aos motoristas. “O trabalho digno é um direito inalienável. Reconhecer essa dignidade é essencial para garantir a proteção que fundamenta uma sociedade justa e igualitária”, finalizou.

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