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“Precisamos reconhecer como trabalhadores, não só como parceiros”, diz pesquisadora sobre entregadores

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Entrevista
Conversas com especialistas, gestores e profissionais do setor, com perguntas conduzidas pela equipe do 55content.
Imagem mostra uma pessoa de perfil em um ambiente com parede de vidro. A pessoa veste uma blusa sem mangas e está olhando para longe, com detalhes de estrutura de vidro ao fundo.
Pessoa de perfil profissional olhando para longe, com parede de vidro no fundo.

Nina Desgranges, doutoranda e pesquisadora, expõe a realidade dos trabalhadores de apps de entrega e as dificuldades impostas pela dinâmica das plataformas.

A pesquisadora Nina Desgranges, cientista social e doutoranda em Sociologia e Antropologia na UFRJ, investiga há cerca de cinco anos a dinâmica do trabalho por aplicativos, com foco nas condições enfrentadas pelos trabalhadores de plataformas digitais. 

Trajetória e experiência

Nina Desgranges começou a pesquisar o tema dos trabalhadores por aplicativo em 2019, enquanto ainda estava na graduação em Ciências Sociais. 

Esse tema, inicialmente explorado em um projeto de iniciação científica, ganhou força durante seu mestrado, onde se dedicou a investigar a realidade de entregadores que também atuam como influenciadores digitais: “Eu explorei essa dupla jornada nas plataformas de trabalho, como entregador e como influenciador”, explica a pesquisadora. 

Essa experiência inicial a preparou para seguir com o tema em seu trabalho atual no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS).

No ITS, Nina lidera o projeto Conecta Trabalhadores, que busca dar voz aos entregadores e promover ações que contribuam para melhores condições de trabalho: “Esse projeto canaliza as vozes dos trabalhadores de aplicativo em busca de melhores condições de trabalho”, descreve.

Para Nina, seu envolvimento com o tema ao longo desses anos permitiu uma visão profunda e contínua sobre a evolução do trabalho por aplicativos, especialmente após o aumento significativo da demanda durante a pandemia. 

Ela observa que o tema, que inicialmente era pouco estudado, passou a chamar mais atenção, especialmente diante das condições enfrentadas pelos entregadores no contexto pandêmico. 

A centralidade do iFood no cenário brasileiro

Para Nina, o iFood é um ator fundamental para entender a plataformização do trabalho de entregas no Brasil, sendo a maior empresa do setor na América Latinai. Segundo a pesquisadora, essa dominância do iFood é relevante para a discussão do fenômeno em um nível nacional, devido ao impacto social e econômico que gera.

Além disso, a pesquisadora explica que a abrangência geográfica do iFood, com presença em boa parte do país, é outro fator que torna a empresa central nas análises. Contudo, Nina também considera que, em determinadas regiões, outras plataformas menores ganham relevância e conseguem suprir a demanda local:“Existem regiões onde o iFood não atende, e nessas áreas surgem aplicativos menores, como o Aiqfome”. Essa diversidade de plataformas regionais, na avaliação de Nina, contribui para um cenário mais plural, ainda que o iFood continue sendo a principal referência.

Apesar dessa diversidade, Nina destaca que a posição do iFood como “empresa de tecnologia” impacta a percepção da empresa sobre o trabalho de entrega, o que se reflete na forma como gerencia os entregadores e sua operação. 

A empresa posiciona-se como intermediária tecnológica, o que, segundo Nina, interfere diretamente na forma como os trabalhadores são vistos e tratados dentro da plataforma. Para ela, esse é um ponto central nas discussões sobre a realidade do trabalho de entregadores em aplicativos no país.

A precariedade e o risco do trabalho

A pesquisadora expõe com preocupação os riscos enfrentados pelos entregadores, que lidam diariamente com a violência urbana e o trânsito. Segundo Nina, os entregadores de aplicativo estão expostos a múltiplos tipos de violência: “A violência urbana e do trânsito são ameaças constantes para esses trabalhadores”, comenta. 

Ela observa que a falta de segurança é agravada pela presença de pessoas que, disfarçadas de entregadores, cometem crimes, o que contribui para um aumento no preconceito em relação à categoria.

Esse fenômeno impacta a forma como a sociedade vê esses trabalhadores, especialmente no período pós-pandemia. Durante a pandemia, os entregadores eram amplamente reconhecidos como essenciais, mas, segundo Nina, a percepção pública se transformou: “Na pandemia, a gente era herói, agora somos vistos como problema”, relata, com base no discurso dos próprios entregadores. Esse movimento de desvalorização é um reflexo de uma série de fatores, que inclui o aumento dos crimes e o tratamento diferenciado que os entregadores passaram a receber.

Outro aspecto que a pesquisadora destaca é o impacto psicológico desses fatores sobre os entregadores. Ela explica que muitos relatam se sentir cada vez menos valorizados pela sociedade, e que a constante exposição a situações de risco e estigmatização tem um efeito direto em seu bem-estar. 

Esse cenário, na visão de Nina, revela a necessidade de um olhar mais atento para as condições de trabalho e segurança desses profissionais, que continuam a desempenhar uma função essencial, mas em condições cada vez mais difíceis.

Algoritmo e autonomia

Nina aborda a complexa relação entre os trabalhadores e o algoritmo, destacando a ambiguidade entre autonomia e controle. Os entregadores têm, em teoria, liberdade para definir seus horários, mas, na prática, as plataformas monitoram e restringem essa autonomia: “Se recusar muitos pedidos, o entregador pode ser bloqueado”, afirma. Essa dinâmica gera um paradoxo para os trabalhadores, que, ao mesmo tempo em que buscam flexibilidade, enfrentam consequências caso não cumpram certas expectativas de desempenho.

A pesquisadora observa que a gestão por algoritmos cria um modelo híbrido de controle e autonomia, que desafia a percepção dos trabalhadores sobre sua posição no mercado. 

Muitos desenvolvem estratégias para otimizar sua rotina e “driblar” o algoritmo, como explica Nina: “Essas pessoas também não são totalmente reféns das plataformas. Elas têm uma certa autonomia para gerir sua rotina”. Essas estratégias, segundo ela, refletem a resiliência dos trabalhadores, que buscam formas de superar as limitações impostas pelas plataformas.

Para Nina, essa mistura entre controle algorítmico e autonomia é um dos maiores desafios para a organização coletiva dos entregadores: “Essa ambiguidade dificulta a mobilização, porque, embora exista o controle, há também uma flexibilidade”, observa. 

Na visão da pesquisadora, essa estrutura algorítmica acaba criando um cenário em que os trabalhadores se veem constantemente em busca de estratégias para manter sua renda e garantir um fluxo de trabalho estável.

A “caixa preta” dos apps e a adaptação dos trabalhadores

Inicialmente, a falta de transparência dos algoritmos das plataformas era vista pela pesquisadora como o principal desafio. Nina destaca que os entregadores, no entanto, começaram a identificar padrões e a desenvolver estratégias de acordo com uma “caixa preta” não oficial: “Mesmo sem ter todas as informações, eles estavam estruturando suas rotinas de acordo com os critérios que o iFood finalmente admitiu que usava para priorizar determinados usuários”, aponta Nina.

A pesquisadora cita o exemplo do “score”, uma pontuação que os entregadores acreditavam que o iFood utilizava para classificá-los. Embora a empresa tenha negado inicialmente, os trabalhadores continuaram organizando suas estratégias com base nessa suposta pontuação: “Os entregadores, na prática, já sabiam o que era necessário para se organizar”, comenta. Somente anos depois, a plataforma passou a admitir o uso de critérios de ranqueamento, o que confirma as suspeitas que os trabalhadores tinham sobre o funcionamento do sistema.

Para Nina, esse fenômeno mostra a capacidade dos entregadores de se adaptarem mesmo em um cenário de pouca transparência. A pesquisadora destaca que, embora o algoritmo seja opaco, ele faz parte do cotidiano desses trabalhadores, que encontram maneiras de contorná-lo. 

Diversidade de subjetividades e desafios na organização

Nina observa que a diversidade de subjetividades entre os entregadores é um dos fatores que mais dificultam a organização coletiva da categoria. Ela explica que os entregadores se veem de maneiras distintas, alguns como autônomos ou empreendedores, enquanto outros se consideram trabalhadores subordinados: “Esse espectro dificulta muito a organização da categoria, a criação de associações, de sindicatos”, afirma Nina. Essa pluralidade de percepções torna complexo estabelecer uma identidade unificada entre os trabalhadores.

Para a pesquisadora, essa diversidade é fruto da estrutura flexível oferecida pelas plataformas, que permite aos trabalhadores estabelecerem sua própria rotina. No entanto, essa autonomia é também uma barreira para a criação de uma coesão que favoreça a organização sindical. 

Ela destaca que, ao contrário de categorias mais homogêneas, como metalúrgicos, os entregadores possuem uma gama ampla de percepções e identificações com o trabalho: “Essa é uma categoria muito diversa, muito plural, muito heterogênea”, observa.

Além disso, a pesquisadora aponta que essa subjetividade impacta a forma como os entregadores lidam com as plataformas. A falta de unidade impede que questões como direitos e condições de trabalho sejam defendidas de forma coletiva e organizada. 

Segundo Nina, essa diversidade reflete uma das principais características do trabalho por aplicativo: a flexibilidade, que, ao mesmo tempo que permite liberdade, também dificulta a construção de uma identidade coletiva entre os trabalhadores.

Políticas públicas e regulação

Questionada sobre possíveis soluções para a precarização do trabalho, Nina sugere que o caminho deve envolver um diálogo amplo entre diferentes setores, como trabalhadores, governo, empresas e sociedade civil. 

Ela acredita que é essencial reconhecer os entregadores como trabalhadores, e não apenas como “parceiros” ou “empreendedores de si”: “Acho que o primeiro passo é reconhecer essas pessoas como pessoas trabalhadoras”, reforça. Para ela, essa mudança de perspectiva é fundamental para qualquer tentativa de regulação.

Nina menciona que a construção de uma regulamentação deve envolver discussões setoriais e a participação de múltiplas vozes. Ela vê a Justiça do Trabalho como uma instituição relevante para lidar com as demandas dos trabalhadores de aplicativos, mas acredita que a efetividade das políticas dependerá de uma abordagem colaborativa: “A gente precisa que muitas vozes e muitas perspectivas sejam escutadas”, observa. 

Segundo ela, um diálogo com representantes de trabalhadores, advogados, acadêmicos e empresas seria um passo importante para estabelecer medidas justas.

A pesquisadora acredita que alternativas também podem surgir, como plataformas organizadas pelos próprios trabalhadores, modelo que já é objeto de estudo de muitos especialistas no Brasil e no exterior. 

Essas iniciativas, segundo Nina, refletem a busca por novas formas de organização do trabalho, que possam oferecer condições mais favoráveis e seguras. Ela observa que o tema da regulação está ganhando espaço em conferências internacionais, evidenciando que essa discussão é uma questão global que exige respostas.

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Anna Julia Paixão

Anna Julia Paixão é estagiária em jornalismo do 55content e graduanda na Escola Superior de Propaganda e Marketing.

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