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“Assegurar condições mínimas de trabalho é urgente”: O impacto de apps como a Uber no futuro do trabalho

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Motorista
Motorista segurando smartphone com o aplicativo Uber aberto.
Um motorista segura o volante enquanto visualiza o aplicativo Uber em seu smartphone, reforçando a importância do uso de tecnologia em serviços de transporte.

Relatório da OIT enfatiza a necessidade de regulamentação global para garantir direitos e justiça para trabalhadores em plataformas digitais.

As plataformas digitais de trabalho, como Uber, 99, inDrive e iFood cresceram exponencialmente ao redor do mundo na última década, de acordo com o relatório World Employment and Social Outlook 2021 da OIT. 

Esse crescimento acentuado destaca a urgência de um diálogo político internacional e de uma cooperação regulatória eficaz para assegurar oportunidades de emprego decente e fomentar o desenvolvimento de negócios sustentáveis.

Plataformas Digitais: Uma Nova Fronteira para Empregos Decentes

O relatório, intitulado “O papel das plataformas digitais de trabalho na transformação do mundo do trabalho” (WESO 2021: The role of digital labour platforms in transforming the world of work), revela que essas plataformas têm proporcionado novas oportunidades de emprego, especialmente para mulheres, pessoas com deficiência, jovens e grupos marginalizados nos mercados de trabalho tradicionais. As plataformas permitem que empresas acessem uma força de trabalho ampla, flexível e diversificada em habilidades, ao mesmo tempo em que expandem sua base de clientes.

Há dois principais tipos de plataformas digitais de trabalho abordados no relatório: as plataformas online baseadas na web, onde tarefas são realizadas remotamente, e as plataformas baseadas em localização, como serviços de táxi ou entrega, onde o trabalho é executado em locais específicos. As conclusões do relatório são baseadas em pesquisas e entrevistas com cerca de 12.000 trabalhadores e representantes de 85 empresas em diversos setores globais.

Os desafios enfrentados pelos trabalhadores de plataformas incluem condições de trabalho inadequadas, incerteza na regularidade do trabalho e da renda, e a falta de acesso a direitos fundamentais como proteção social, liberdade de associação e negociação coletiva. Muitos trabalhadores de plataforma têm jornadas longas e imprevisíveis e, em média, metade deles ganha menos de dois dólares por hora. A pandemia de COVID-19 destacou ainda mais essas dificuldades.

As empresas são culpadas por praticar concorrência desleal, falta de transparência em dados e preços, e altas taxas de comissão. Pequenas e médias empresas (PMEs) encontram dificuldades adicionais em obter financiamento e infraestrutura digital.

Recentemente, a discussão sobre a regulamentação das plataformas digitais ganhou destaque nos Estados Unidos, onde Uber e Lyft ameaçaram deixar Minneapolis, a maior cidade de Minnesota, caso um plano para aumentar a remuneração dos motoristas fosse aprovado.

De acordo com a Associated Press, o Legislativo estadual avançou com uma nova proposta que suaviza as exigências originais, estabelecendo uma taxa de pagamento mínimo de US$ 1,28 por milha (1,6 km) e 31 centavos por minuto, ao invés dos US$ 1,40 por milha e 51 centavos por minuto inicialmente propostos. Este acordo, elaborado pelos democratas e anunciado após intensas negociações, agora segue para ser assinado pelo governador Tim Walz, com implementação prevista para janeiro de 2025. Embora as taxas acordadas sejam mais baixas do que os motoristas desejavam, Marianna Brown, vice-presidente da Associação de Motoristas de Uber/Lyft de Minnesota, declarou ao Star Tribune que os motoristas ficaram satisfeitos com o acordo.

Neste cenário, a distinção entre empregados e autônomos está se tornando menos clara com o crescimento das plataformas digitais de trabalho. As condições de trabalho muitas vezes dependem dos termos dos contratos de serviço, geralmente estabelecidos unilateralmente pelas plataformas, e os algoritmos estão substituindo humanos na alocação e avaliação do trabalho e na administração e monitoramento dos trabalhadores.

O relatório enfatiza a necessidade de políticas coerentes e coordenadas para garantir que as plataformas operando em diferentes jurisdições ofereçam trabalho decente e sustentem o crescimento de empresas sustentáveis. 

Novas Oportunidades e Antigos Desafios

Guy Ryder, Diretor-geral da OIT, afirmou: “As plataformas digitais de trabalho estão abrindo oportunidades que não existiam antes, especialmente para mulheres, jovens, pessoas com deficiência e grupos marginalizados. No entanto, os novos desafios que elas apresentam podem ser enfrentados por meio do diálogo social global, garantindo que trabalhadores, empregadores e governos possam se beneficiar plena e igualmente desses avanços. Todos os trabalhadores, independentemente de sua condição contratual, devem poder exercer seus direitos fundamentais no trabalho.”

O relatório também destaca que os custos e benefícios das plataformas digitais não são distribuídos uniformemente pelo mundo, com 96% dos investimentos concentrados na Ásia, América do Norte e Europa, e 70% das receitas em apenas dois países, Estados Unidos e China. Esse desequilíbrio perpetua a exclusão digital e pode exacerbar as desigualdades.

Governos, empresas e representantes dos trabalhadores, incluindo sindicatos, têm começado a enfrentar algumas dessas questões, mas as respostas variam, gerando incertezas. Portanto, a coordenação e o diálogo político internacional são necessários para garantir a certeza regulatória e a aplicação das normas internacionais de trabalho.

O relatório da OIT apela para um diálogo social e cooperação internacional entre plataformas digitais de trabalho, trabalhadores e governos, com o objetivo de implementar estratégias eficazes e consistentes que assegurem a correta classificação da situação laboral dos trabalhadores, transparência e responsabilidade dos algoritmos, direitos de negociação coletiva para trabalhadores autônomos, acesso adequado a benefícios de seguridade social e acesso aos tribunais da jurisdição onde os trabalhadores se encontram.

“Os principais desafios são de fato os direitos dos trabalhadores”

Rafael Calabria, especialista em mobilidade urbana e gestão urbana, diz que é importante esclarecer que o problema da regulamentação não é a tecnologia, pois a tecnologia pode ser aplicada em qualquer processo – até nos táxis ou nos transportes regulares. 

“A questão é um grupo de serviços que surgiu sem a devida regulação, os principais desafios são de fato os direitos dos trabalhadores, dos passageiros e a mobilidade da cidade. Isso envolve itens como garantias para: tempo de descanso e tempo máximo de trabalho, de remuneração mínima, recursos para manutenção dos veículos, critérios de atendimento ao consumidor, redução de emissão de poluentes e controle de frota circulando ociosa – o que talvez leve a limitação de frota registrada”, explica. 

“Assegurar condições mínimas de trabalho e de vida para esses trabalhadores é urgente”

A equipe do 55content entrevistou Renan Kalil, Procurador do Trabalho e Coordenador Nacional da CONAFRET, para obter uma visão comparativa e contextual sobre a regulamentação do transporte por aplicativo em diferentes países.

Renan Kalil
Renan Kalil
Foto: Reprodução/ Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

Renan Kalil explica que o artigo 17º do substitutivo do PLP 12/2024 autoriza as empresas a implementarem certas práticas sem que isso configure uma relação de trabalho autônomo. Ele detalha: “I – estabelecer normas e procedimentos para assegurar a segurança do aplicativo e da plataforma, assim como dos motoristas, usuários e passageiros, com o intuito de prevenir fraudes, abusos ou utilizações inadequadas, desde que exemplificadas nos termos de uso ou contratos firmados com motoristas ou usuários; II – implementar diretrizes para a manutenção e elevação da qualidade dos serviços por ela intermediados, incluindo medidas como suspensões, bloqueios e exclusões; III – utilizar sistemas de monitoramento em tempo real para o acompanhamento da prestação de serviços e das rotas percorridas, observado o disposto na LGPD; IV – implementar sistemas de avaliação tanto para motoristas quanto para usuários, fomentando um ambiente seguro e de confiança mútua na plataforma; V – ofertar programas de capacitação e desenvolvimento, além de benefícios e incentivos, monetários ou de outra natureza, aos motoristas, promovendo seu aprimoramento contínuo e engajamento.”

Para Kalil, considerar que a adoção dessas práticas pelas plataformas não caracteriza trabalho subordinado é antiquado, pois reflete uma visão datada do século passado e não reconhece as novas formas de controle possibilitadas pelo avanço da tecnologia. Ele argumenta que esse dispositivo ignora a dinâmica de trabalho em empresas proprietárias de plataformas digitais no setor de transporte de passageiros, onde há um controle substancial do trabalho realizado, mediado pela administração da mão de obra por meio de algoritmos.

O gerenciamento algorítmico implica a transferência da administração da mão de obra para os algoritmos, automatizando atividades que anteriormente eram responsabilidade de gerentes, contadores, atendentes e trabalhadores de recursos humanos. “Por meio da programação algorítmica ocorre, por exemplo, a distribuição de atividades entre os trabalhadores, a fixação do valor do trabalho, a indicação do tempo para realização de uma tarefa, a duração de pausas, a avaliação dos trabalhadores e a aplicação de sanções”, explica Kalil.

Em abril de 2024, o Parlamento Europeu aprovou uma diretiva sobre o trabalho via plataformas digitais, estabelecendo regras para combater a classificação fraudulenta de trabalhadores como autônomos. “O artigo 5º da diretiva presume legalmente que a relação entre uma plataforma digital e um trabalhador é uma relação de trabalho quando há elementos de controle e direção da atividade”, explicou Kalil. Se a plataforma quiser refutar essa presunção, deve demonstrar que a relação é de outra natureza. A diretiva também proíbe a dispensa de trabalhadores com base em decisões automatizadas por algoritmos e restringe o acesso a determinados tipos de dados pessoais.

Kalil diz ainda que a regulação do trabalho via plataformas digitais impacta diretamente uma grande quantidade de pessoas. Segundo pesquisa realizada pelo IBGE a partir de dados da PNAD Contínua, em 2022 o Brasil tinha 1,5 milhão de pessoas que trabalhavam por meio de plataformas digitais, ou seja, aproximadamente 1,7% da população ocupada do setor privado. “Assegurar condições mínimas de trabalho e de vida para esses trabalhadores é urgente para que as famílias que dependem dessa fonte de renda tem meios de viver de maneira digna”, comentou. 

“A diretiva da União Europeia parece uma solução muito interessante”

Quando questionado sobre os maiores desafios enfrentados pelos governos na regulamentação do transporte por aplicativo, o procurador Renan Kalil destacou: “Um dos maiores desafios é como dar conta de uma realidade que comporta empresas que podem operar de forma distinta, para que as regras para o trabalho via plataformas digitais abarquem essas diferenças. Nesse sentido, a diretiva da União Europeia parece uma solução muito interessante, na medida que permite que se estabeleça uma presunção da existência de uma relação de trabalho a partir da identificação de elementos de direção e de controle exercidos pelas empresas. Ainda, a diretiva compreende melhor a distribuição de poder que existe entre os trabalhadores e as plataformas, na medida em que, identificados esses elementos de direção e de controle, caberá à plataforma demonstrar que a relação é distinta de uma relação de trabalho – o que é perfeitamente razoável, já que são as plataformas que detêm todas as informações a respeito da dinâmica dessa relação.”

Em relação às tendências futuras da regulamentação do transporte por aplicativo globalmente, Kalil prevê um longo período de debates. Ele observa que países como Espanha, Chile e Portugal já implementaram leis para regular o trabalho via plataformas digitais e que o impacto dessas iniciativas sobre os trabalhadores e a sociedade será monitorado. “Além disso, vários outros países, como o Brasil, estão debatendo como tratar da melhor maneira a criação de regras para essa atividade. Cabe ainda destacar que, em 2025, o tema do trabalho via plataformas digitais será objeto de discussão na Conferência Internacional do Trabalho da OIT, o que certamente produzirá impactos nos debates realizados dentro dos países ao redor do mundo”, acrescentou Kalil.

“O PL 536 promove de fato uma autonomia que hoje o motorista não tem”

De acordo com o deputado federal Daniel Agrobom, o modelo de trabalho por aplicativos de transporte individual de passageiros é historicamente recente, o que deixa muitos pontos em aberto. “Em todo o mundo, debate-se a melhor forma de definir as relações entre os profissionais e as empresas da área. A natureza dinâmica e em constante evolução da tecnologia apresenta um desafio adicional para a regulamentação. As leis e regulamentações precisam ser flexíveis o suficiente para acompanhar as mudanças no setor, garantindo ao mesmo tempo que os padrões de segurança e qualidade sejam mantidos.”

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Foto: Reprodução/Câmara dos Deputados

Agrobom ressaltou os desafios enfrentados durante o processo de construção da legislação. Ele explicou que, “Enfrentamos desafios no processo de construção dessa legislação, uma vez que, durante todo o Grupo de Trabalho, a Frente Parlamentar enquanto representante da categoria no Congresso, não foi convidada a participar da mesa de debates e negociações. Quando o PLP 12/2024, que regulamenta a categoria dos motoristas de app, foi apresentado, o mérito foi rejeitado por grande parte da categoria.”

Mesmo após a retirada da Urgência Constitucional e com diversas audiências públicas realizadas para dar voz aos motoristas, Agrobom observou que houve resistência em acatar as reivindicações da classe. “Mais uma vez, a Frente Parlamentar vem sendo excluída das mesas de debates. Seguiremos ao lado da categoria, defendendo aquilo que é a realidade, lutando lado a lado para que cheguemos ao final com uma regulamentação que de fato traga benefícios reais a esses valorosos profissionais.”

Sobre as medidas para garantir a segurança dos passageiros e motoristas, Agrobom afirmou que a segurança é uma preocupação constante. Ele mencionou que, “O fator segurança tanto dos motoristas quanto dos passageiros é alvo de grandes discussões e debates. Desde a criação da Frente Parlamentar, recebemos vários relatos de motoristas de todo país, demonstrando as mais diversas abordagens.”

Ele acrescentou que as plataformas podem auxiliar muito na prevenção, especialmente para os motoristas parceiros. “Não é apenas um problema de segurança pública. Instituir itens obrigatórios nos cadastros, como foto e nome civil do passageiro, código de verificação, localização/endereço detalhado da viagem, número de viagens e nota dos usuários, pode contribuir para que o motorista avalie melhor determinada corrida antes do aceite. Alguns desses pontos foram amplamente discutidos e inseridos no projeto apresentado.”

Quanto à questão da tributação e arrecadação de impostos das empresas com o PLP 536, que objetiva regulamentar a categoria dos motoristas de app, Agrobom explicou que o projeto é pautado na autonomia e liberdade dos motoristas. “O PL 536/2024, de minha autoria, foi pautado na autonomia e liberdade dos motoristas, tanto é que o seu intuito é regulamentar a profissão de motoristas autônomos de serviços de mobilidade urbana.”

Ele concluiu, “nesse preceito, o PL 536 promove de fato uma autonomia que hoje o motorista não tem, inclusive na precificação de sua prestação de serviços. Nessa ótica, havendo uma autonomia real por parte do profissional, o texto não interfere em questão tributária ou arrecadação de impostos dessas empresas, exceto na criação da obrigatoriedade das operadoras em fixar a taxa de intermediação pelo serviço prestado.”

Luiz Corrêa, Presidente do Sindicato dos Motoristas de Aplicativos (Sindmobi), diz que a precarização do trabalho só será travada com uma regulamentação federal dos aplicativos. “No grupo de trabalho, estudamos todos os projetos de lei aprovados em alguns países, pegando um pouco de cada um para apresentar um projeto inicial. Durante a tramitação, estamos batalhando para implementar os reajustes necessários. As mudanças na PLP 12/2024 estão em andamento, mas alguns artigos ainda precisam ser modificados, como especificar que o motorista presta serviço para a empresa e não para o cliente.”

Luiz Sindmobi
Luiz Corrêa
Foto: Luiz Corrêa para 55content

Segundo Corrêa, as mudanças necessárias para melhorar a vida dos trabalhadores por aplicativos são a criação da categoria, estabelecimento de um ganho mínimo, previdência, imposição de barreiras nas empresas, fixação do desconto máximo das empresas, descontos na compra de carros, normas regulamentadoras para frear o algoritmo, acordos coletivos, dissídio coletivo e convenções coletivas.

“Precisamos de uma regulamentação própria”

Denis Moura, motorista de aplicativo, diretor de comunicação da FEMBRAPP e presidente da AMPA-RJ, comenta sobre a regulamentação dos aplicativos de transporte no Brasil. Segundo ele, “apesar de sempre estudarmos a regulamentação de outros países, não me baseamos nelas. É normal que procuremos entender o que está acontecendo em outros lugares, mas o Brasil é um país extremamente continental.” Moura acrescenta que a Lei 13.640 já regulamenta os aplicativos no Brasil e critica o atual governo por tentar se apropriar dessa regulamentação. “O governo atual está propondo emendas a essa lei, com um projeto para a PL12, que na verdade é um decreto sobre uma lei já existente.”

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Denis Moura
Foto: Reprodução/YouTube

Ele destaca que, embora estudem outras regulamentações, os motoristas entendem que o Brasil é muito grande e tem necessidades muito diferentes, o que dificulta a adoção de modelos estrangeiros. “O projeto 536 aborda isso, pois fala sobre o markup e respeita as despesas regionalizadas para o cálculo de valores. Precisamos de uma regulamentação própria”, afirma Moura. Ele conclui que “o Brasil, hoje, é um exemplo de resistência dos motoristas, da organização dos motoristas e da resistência em relação aos desmandos das plataformas viárias do mercado, o que nos distingue de outros países.”

O que as plataformas dizem

A equipe do 55content entrou em contato com as empresas Uber, 99 e inDrive para entender suas posições sobre a regulamentação do setor no Brasil. Até o momento da publicação desta matéria, a Uber e a 99 não responderam às nossas solicitações. A inDrive, por outro lado, forneceu a seguinte resposta:

“A inDrive opera em conformidade com as leis locais e incentiva os motoristas a seguir o mesmo caminho, através do compartilhamento de informações sobre regulamentações. A empresa tem um departamento específico de Relações Governamentais, que mantém um contato próximo com os municípios para promover um ecossistema cada vez mais seguro e saudável para motoristas, empresas de transporte por app e a comunidade em si.”

Foto de Giulia Lang
Giulia Lang

Giulia Lang é líder de conteúdo do 55content e graduada em jornalismo pela Fundação Cásper Líbero.

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