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“Vou rodar 20 quilômetros e ganhar R$ 10, ou vou rodar 20 quilômetros e ganhar R$ 20?”: os apps geridos pelos próprios trabalhadores

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EntregadorMoto
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Entregadores e motoristas criam suas próprias plataformas em resposta aos grandes aplicativos do setor.

Com o crescimento exponencial do setor de economia compartilhada, caracterizado por aplicativos de transporte e entrega, surgiram preocupações relacionadas aos direitos e à remuneração dos trabalhadores de aplicativo.

Em resposta, algumas iniciativas de cooperativas, sindicatos e até dos próprios trabalhadores têm desenvolvido suas próprias plataformas, geridas por eles mesmos.

Liderança com Experiência Prática

Wilhian Djones é gestor do aplicativo Entregas e Coletas, um serviço de delivery na região de Dourados, Mato Grosso do Sul. Wilhian começou a trabalhar como motoboy durante a pandemia, o que levou à criação de um grupo de entregadores que evoluiu para o aplicativo “Entregas e Coletas”.

Sob sua gestão, o aplicativo “Entregas e Coletas” realiza aproximadamente 1000 entregas por dia, totalizando mais de 1,3 milhões de entregas desde sua criação. O aplicativo, que começou como um grupo no WhatsApp entre entregadores e estabelecimentos, tornou-se uma ferramenta importante para a logística local, apoiando pequenos empresários e mantendo a qualidade dos serviços prestados.

“Olha, a nossa estrutura de governança é formada pelos sócios. São três sócios que tomam decisões, e esses três sócios também vieram da rua, saíram do trabalho braçal, do trabalho de motoboy,” afirmou Djones. Essa experiência prática influencia diretamente as decisões da empresa. “Eu ainda faço entregas sem problema nenhum; no período da noite, eu vou para a rua e faço minhas entregas.”

Essa prática permite que as decisões sejam tomadas com uma compreensão profunda das condições e desafios enfrentados diariamente pelos motoboys. Djones enfatiza que a empresa molda seu aplicativo conforme as necessidades específicas da cidade, abordando questões locais como manobras arriscadas de motocicletas e outros comportamentos na via pública.

Modelo de Remuneração Justo

A Entregas e Coletas adota um modelo de remuneração por quilômetro rodado, uma abordagem que Djones acredita ser justa e alinhada com a essência do trabalho de motoboy. “A definição de ganhos do motoboy aqui é feita por região. Nesta região, estamos trabalhando ainda com a margem de um real por quilômetro. Em algumas modalidades, chegamos a R$ 1,10 por quilômetro por entrega,” explicou.

Essa estratégia resulta em uma média de ganhos por entrega entre R$ 9 e R$ 10 em Dourados. Djones reconhece que entregas mais distantes podem criar desafios, mas a empresa está comprometida em ajustar os pagamentos conforme necessário para garantir a equidade: “Quando isso acontece, fazemos a correção e o ajuste de pagamento”, justifica. 

“Acredito que hoje trabalhamos muito por quilômetro rodado, pois isso é a essência do motoboy. Ele pensa: ‘Vou rodar 20 quilômetros e ganhar R$ 10, ou vou rodar 20 quilômetros e ganhar R$ 20’. Isso ajuda muito no contexto, pois você tem uma dinâmica grande com o motoboy, e assim pagamos um preço justo. Se compararmos com outras empresas, vemos que algumas pagam R$ 0,50 ao motoboy, o que é uma desvalorização muito alta da classe. Trabalhamos com essa balança: se aumenta o combustível ou o preço das peças, ajustamos a nossa tabela de preços, sempre comparando com o mercado.”

Ajustes com Base no Mercado

O gestor destacou a importância de ajustar a tabela de preços com base nas flutuações do mercado, como aumentos no custo do combustível ou peças de reposição. “Se compararmos com outras empresas, vemos que algumas pagam R$ 0,50 ao motoboy, o que é uma desvalorização muito alta da classe.”

Um dos principais desafios enfrentados pela Entregas e Coletas é a concorrência desleal. Djones explica que, embora muitos novos concorrentes entrem no mercado, eles frequentemente não conseguem sustentar suas operações devido à falta de um sistema robusto e adaptado às necessidades dos motoboys.

“Muitas vezes, quem olha de fora não vê o que se passa dentro da empresa e acaba achando que é um serviço fácil e tranquilo. Isso atrai concorrentes, mas eles acabam não aguentando porque nosso sistema é diferente de todos os outros. Nosso sistema é diferente de todos os outros. Todos aqui na empresa seguem uma meta diferente, focada em oferecer benefícios ao motoboy. Esse é o diferencial que nos permite nos manter no mercado sem problemas”, destacou Djones. 

Djones acredita que a maior dificuldade é convencer os motoboys de que outras plataformas os prejudicam, enquanto a Entregas e Coletas oferece um ambiente mais justo e lucrativo. “A partir do momento em que conseguimos convencer o motoboy de que estamos fazendo o certo, a possibilidade de crescimento é enorme. Isso torna a nossa plataforma competitiva, como mencionei, mesmo em comparação com grandes startups,” concluiu.

Criação e Propósito

Aline Os é a fundadora da cooperativa Señoritas Courier, uma organização cooperativa de entregas de bicicleta criada em 2017. A cooperativa é de propriedade de seus trabalhadores e trabalhadoras e foca no apoio a mulheres e à comunidade LGBTQIA+ que buscam uma renda extra e uma alternativa cooperativa no setor de entregas urbanas.

Aline começou a trabalhar com entregas de bicicleta em 2015 para complementar sua renda. Durante um período de insatisfação profissional e enfrentamento da depressão, ela encontrou na bicicleta um meio de transporte que a ajudou a manter sua saúde mental.

A ideia de criar o coletivo surgiu após dois anos de experiência no setor de entregas. O objetivo era oferecer uma alternativa de renda para pessoas em situação de vulnerabilidade e promover um espaço de trabalho colaborativo, com participação igualitária nas decisões. A estrutura do coletivo segue princípios cooperativistas, e Aline nunca teve a intenção de ser uma CEO ou proprietária.

Com a pandemia em 2020, o coletivo ganhou mais importância. Após perder seu emprego como assistente de um acervo fotográfico, Aline decidiu dedicar-se inteiramente ao Señoritas Courier, projeto no qual acreditava.

Segundo sua fundadora, hoje a cooperativa está promovendo avanços significativos em sua governança e participação tecnológica. Em parceria com o Núcleo de Tecnologia do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), a cooperativa tem discutido formas de aprimorar a governança e a participação dos cooperados na tecnologia. “Estamos avançando gradualmente no debate. Estamos aprendendo como fazer da melhor forma. Grandes esforços estão sendo empenhados para se apropriar das tecnologias e tem sido positivo”, afirmou Aline.

Crescimento e Desafios

No entanto, o principal desafio que a plataforma enfrenta continua sendo financeiro. Aline destacou a necessidade de recursos para avançar em áreas essenciais como divulgação, comunicação, infraestrutura e implementações da plataforma. Além disso, a formação das pessoas que fazem entregas para que se aproximem e se aprofundem na linguagem de programação é crucial. “Precisamos de recursos para avançar com divulgação/comunicação, infraestrutura e implementações da plataforma, bem como na formação das pessoas que fazem entregas para que estas se aproximem e se aprofundem na linguagem de programação”, disse.

Esse desafio financeiro também se estende à captação de clientes, uma vez que, com mais recursos, a cooperativa conseguiria alcançar mais clientes, estabelecer parcerias e criar novos postos de trabalho. “Com recursos, conseguimos também alcançar clientes, parcerias e ter condições para pensar em gerar novos postos de trabalho”, acrescentou Aline.

Sobre os ganhos dos entregadores, Aline explicou que eles são definidos pelo volume de entregas realizadas em relação à jornada de trabalho dedicada. “Estes dados passam pelo trabalho do algoritmo que desenvolvemos, que permite jornadas menores de trabalho com melhores ganhos, sem onerar o cliente final”, explicou. A Senoritas Courier continua comprometida em oferecer melhores condições de trabalho para seus cooperados, enquanto enfrenta e supera os desafios financeiros e operacionais em seu caminho.

Um Caminho para Maior Autonomia e Melhores Condições de Trabalho

A advogada Sol Corrêa diz que a criação de cooperativas por motoristas de aplicativo tem demonstrado uma viabilidade crescente a longo prazo, especialmente em um contexto onde os trabalhadores buscam maior autonomia e melhores condições de trabalho. “Essas cooperativas se sustentam na ideia de que, ao eliminar os intermediários, é possível reduzir os custos operacionais e redistribuir de forma mais equitativa os ganhos entre os membros. No entanto, a sustentabilidade dessas plataformas depende de vários fatores, como a capacidade de atrair e reter uma base de usuários consistente, a eficiência na gestão dos recursos, e a habilidade de competir com grandes aplicativos já estabelecidos no mercado”, explica. 

Segundo ela, para garantir a viabilidade a longo prazo, essas cooperativas devem investir em tecnologia para oferecer uma experiência comparável ou superior à dos grandes aplicativos, bem como na construção de uma marca forte que inspire confiança tanto dos motoristas quanto dos passageiros. “A governança democrática, característica das cooperativas, pode ser um diferencial positivo, mas também apresenta desafios, como a necessidade de alinhar interesses diversos e tomar decisões coletivas eficientes.”

Desafios e Benefícios das Cooperativas de Motoristas na Busca por Justiça e Equidade no Mercado

A advogada revela que legalmente, um dos principais benefícios das cooperativas de motoristas é a possibilidade de uma maior proteção dos direitos trabalhistas. 

“Em uma cooperativa, os motoristas têm voz ativa nas decisões, o que pode resultar em melhores condições de trabalho e uma distribuição mais justa dos rendimentos. A estrutura cooperativa pode proporcionar uma segurança jurídica maior em comparação com o modelo tradicional de aplicativos, onde os motoristas são muitas vezes classificados como contratantes independentes, sem acesso a benefícios como seguro de saúde, férias remuneradas ou aposentadoria.”

Sol afirma que economicamente, as cooperativas podem oferecer uma remuneração mais justa aos seus membros, já que os lucros são distribuídos entre os cooperados e não direcionados para investidores externos. “A ausência de taxas elevadas cobradas por grandes plataformas permite que os motoristas fiquem com uma maior parcela do valor pago pelas corridas. Além disso, a gestão coletiva pode promover a redução de custos operacionais através de negociações em conjunto para aquisição de seguros, manutenção de veículos e outros serviços necessários para a operação”. 

Para finalizar, ela diz que as cooperativas de motoristas oferecem um modelo promissor de negócio, alinhado com as demandas por maior justiça e equidade no mercado de trabalho. “A viabilidade a longo prazo dependerá da capacidade dessas organizações de se adaptarem às dinâmicas de mercado e de manterem um padrão de qualidade que fidelize os usuários”, conclui. 

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Giulia Lang

Giulia Lang é líder de conteúdo do 55content e graduada em jornalismo pela Fundação Cásper Líbero.

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