Montes Claros (MG) vive um impasse na mobilidade urbana: os ônibus são lentos e lotados, e nos aplicativos os passageiros enfrentam dificuldade para conseguir corridas, já que muitos motoristas consideram os valores incompatíveis.
A cidade, que é um polo econômico, cultural e educacional do norte de Minas, soma 414 mil habitantes, segundo o Censo de 2022, o que a coloca como a sexta mais populosa do estado.
Em Montes Claros, a Uber e a 99 dominam o mercado dos aplicativos. Mas existem outras iniciativas regionais, como a cooperativa Yes Driver, a Brasil Car, Moovi e Maxim, que estão presentes na cidade, mas não conseguiram se consolidar por falta de divulgação e adesão suficiente de motoristas e passageiros. Segundo os próprios moradores, a ausência de marketing e de uma base sólida de usuários acabou limitando a concorrência e reforçando a presença das grandes plataformas.
A equipe de reportagem do 55content ouviu relatos de quem vive essa realidade na pele. Motoristas e passageiros descrevem um verdadeiro ciclo: o usuário prefere o aplicativo mais barato e continua a usá-lo porque sabe que será atendido. O motorista, por sua vez, roda nesse mesmo app porque é onde tem volume de chamadas, mesmo reclamando dos valores baixos.
“Eu acho que tinha um outro”: cidade possui 4 aplicativos regionais atuando, mas passageiros só conhecem Uber e 99
Além das multinacionais Uber e 99, Montes Claros conta com outros diversos aplicativos regionais de mobilidade, mas nenhum conseguiu alavancar a ponto de conquistar a preferência.
Vinícius Tadeu é militar aposentado e faz do aplicativo sua renda extra. “Para mim, o aplicativo é só um complemento de renda, não é profissão”, afirma. Ele conta ainda que, apesar de saber da existência de outros aplicativos na cidade, ele roda apenas pela Uber. “Aqui tem Uber e 99. Tem também uma tal de Yes, teve a Cooper Moc, mas acho que não foi para frente. Hoje eu rodo só na Uber. Eu até rodava na 99, mas teve uma promoção: cumpri as condições e não me pagaram. Fiquei muito chateado e parei de rodar”, explica.
“Teve um tempo aqui um que chamava Yes, daqui de Montes Claros mesmo. Ele estava fazendo frente, mas depois caiu muito. Colocaram uns carros muito feios, motoristas mal apresentados, oferecendo panfletos no ponto de ônibus e o pessoal começou a fugir”, conta Gildesio Pereira, também motorista na cidade.
Em sua avaliação, a falta de cuidado com a apresentação do serviço foi crucial para que o app não fosse pra frente. Para ele, era essencial que o condutor estivesse bem-arrumado, o veículo limpo e em boas condições. No entanto, o problema central dos aplicativos locais, segundo ele, é a dificuldade de atrair motoristas e conquistar aceitação popular.
Tanto para Vinícius, quanto para Gildesio, é imprescindível que o app toque corridas para que o motorista permaneça rodando por ele. “O Yes, por exemplo, é um aplicativo muito bom, paga super bem, só que quase não chama. É muito difícil tocar corrida”, afirma Vinícius.
Nora Rodrigues é passageira e afirma já ter utilizado Yes: “Eu já cheguei a usar. Assim que chegou na cidade eu usei, mas geralmente eu uso mais o Uber. Para falar a verdade, nem sei se ainda existe, porque eu quase não vejo ninguém comentar. Aqui é mais o Uber mesmo e o 99.”
“Eu acho que tinha um outro aplicativo que era próprio da cidade, mas eu nem sei se tem mais. Os dois que funcionam muito bem são Uber e 99 mesmo”, relata o passageiro Rafael Morais.
Baixa remuneração faz motoristas compararem o trabalho a “trocar gasolina por rodagem”, com corridas que não chegam a R$ 1 por quilômetro
A baixa remuneração é uma das principais queixas dos motoristas. Corridas que antes pagavam valores razoáveis hoje mal cobrem o combustível. “Em 2017, uma viagem de três ou quatro quilômetros rendia R$ 14 ou R$ 15. Hoje, a mínima paga R$ 5,70. Muitas vezes você anda cinco quilômetros e não ganha nem R$ 1 por quilômetro”, relata Gildesio, que compara o trabalho a “trocar gasolina por rodagem”. Segundo ele, o aplicativo os força a aceitar corridas baratas apenas para não ficar parado.
A insatisfação é compartilhada por Vinícius, que destaca que, em dois anos e meio, as taxas repassadas aos motoristas nunca foram reajustadas. “A gasolina aumentou várias vezes e o valor continua o mesmo. No fim, quem sofre é o passageiro, que fica esperando porque o motorista não aceita corrida mal paga”, afirma.
De acordo com os motoristas, durante a semana, as corridas são baratas e pouco vantajosas, enquanto nos domingos e em dias de eventos a realidade pode mudar. “Domingo é o melhor dia, porque tem menos ônibus e muitas famílias usam o aplicativo para visitar parentes ou ir à igreja. Dá para ganhar até R$ 40 a hora”, explica Vinícius. Gildesio concorda e acrescenta: “Em dias de concurso e shows a demanda cresce, mas fora disso você roda o dia inteiro para ganhar R$ 200 e metade vai pro combustível”.
Rotina dos motoristas é marcada por desgaste e insegurança
Além da baixa remuneração, há o desgaste físico e os riscos da profissão. O calor intenso e o trânsito desorganizado de Montes Claros tornam a rotina ainda mais pesada. Pensando nisso, Vinícius escolheu rodar só à noite. “É impossível rodar de dia, o sol é infernal e o trânsito caótico. Os motoqueiros cortam por todo lado, é uma loucura”, comenta.
Já para Gildesio, o problema é outro. Ele afirma que evita trabalhar à noite em regiões de bares e festas. “Tem muito bêbado e risco de assalto. Eu prefiro rodar até as 20h e voltar para casa. Senão, o desgaste não compensa”, afirma.
Precariedade no transporte público gera insatisfação entre moradores
O transporte coletivo é alvo de críticas de quem depende dele. Nora Rodrigues relata: “Aqui em Montes Claros eu vou te falar, tá uma calamidade o transporte público. Os ônibus são sucateados e muito sujos.”
Ela comenta ainda sobre a demora: “No meu bairro geralmente passa de meia em meia hora. Mas se o ônibus quebrar, aí você pode ficar no ponto umas três horas. E são poucos os que têm cobrador inclusive, o motorista é que tem que fazer tudo. Então demora mais por causa disso também.”
Já Rafael Morais prefere evitar o transporte público: “Os ônibus demoram muito e para chegar rápido eu sempre prefiro ir de aplicativo. E às vezes o custo-benefício é bem melhor.”
Diferença entre tarifas mostra que, em muitos casos, corridas mínimas de Uber e 99 saem mais baratas do que pegar ônibus coletivo
A corrida mínima pelos aplicativos em Montes Claros é de R$ 5,70 e a passagem de ônibus, R$ 4,60. “Uma família de três pessoas, por exemplo, se for pegar ônibus, compensa mais pegar Uber. De transporte público vai sair R$ 13,80 e às vezes no Uber vai dar a mesma coisa”, afirma Nora. Nesse caso, uma corrida pela Uber ou 99 pode sair pelo mesmo preço, ou até mais barato dependendo da distância, e tem a comodidade que o ônibus não tem.
Nora também relata sua experiência com o valor das corridas: “Eu uso mais para o centro, para médico, essas coisas. Se for de manhã dá R$ 14, R$ 15. Já peguei Uber aqui, umas 8h30, por R$ 18. À tarde é um pouco mais em conta. Dá R$ 13, R$ 15. Depende muito do trajeto, mas a cidade aqui não é muito grande, então o trajeto é curto também.”
Rafael Morais reforça a lógica de comparar os preços entre os aplicativos: “Eu uso mais o 99, porque eu acho ele mais barato do que o Uber. Mas eu sempre tô olhando a diferença do preço entre um e outro.”
Taxas altas e bloqueios automáticos aumentam a sensação de desvalorização entre motoristas
Os motoristas relatam dificuldades constantes para manter a atividade financeiramente viável e criticam a forma como as plataformas conduzem a relação de trabalho. Além dos valores baixos e tarifas altas, os bloqueios automáticos após denúncias de passageiros e a ausência de suporte ou canais de diálogo com as empresas são uma questão para eles.
Gildesio afirma que já foi alvo de denúncia sem ter a chance de se defender. “Já aconteceu de uma passageira pedir a corrida, entrar no carro e depois cancelou. Eu vim embora chateado, revoltado, e aí apareceu lá que fui denunciado por abuso sexual. E me bloquearam um dia inteiro”, conta.
Para ele, a situação exemplifica a vulnerabilidade do motorista frente aos aplicativos. “Você não tem direito a praticamente nada. Se você não trabalhar, você não recebe, e ninguém pergunta o que aconteceu. Não há uma assistência, não há uma bonificação. Você tem que manter o carro funcionando, tem que estar bem e tem que rodar para ganhar. E eles ainda ficam com praticamente 40%, 50% do que a gente ganha”, desabafa.
Com o aumento do combustível e a necessidade de rodar muito mais para conseguir bater a meta, eles se veem trabalhando apenas para passar o tempo, porque o lucro mesmo não chega. “Você faz dez corridas de seis reais e, no fim do dia, percebe que só ganhou o suficiente para pagar o combustível. Se coloca R$ 50 no tanque, você volta com R$ 50. É como se não tivesse trabalhado”, afirma Gildesio.
Mototáxis e táxis ainda disputam espaço com os aplicativos
Além dos aplicativos, os mototáxis e táxis estão bastante presentes em Montes Claros. “Aqui tem muito mototáxi. Então as pessoas acabam optando porque chama e ele vem, mesmo sendo mais caro”, conta Vinícius.
Nora, no entanto, evita esse tipo de transporte: “Mototáxi aqui tem bastante. Eu não uso, porque eu tenho amor à minha vida. Eles correm muito, então eu evito.”
Os táxis, por sua vez, seguem tendo espaço na cidade, especialmente quando os aplicativos não atendem ou recusam corridas. “Os táxis aqui rodam super bem, porque já que a Uber não atende, a 99 não atende, a pessoa tem compromisso e acaba indo de táxi. Não importa pagar mais caro, ela precisa chegar”, afirma Vinícius. A percepção é confirmada por Nora: “Já usei táxi aqui algumas vezes, por necessidade mesmo. É bem mais caro que o aplicativo. Do centro para a minha casa, por exemplo, dá uns R$ 25. No aplicativo, a mesma corrida sai por R$ 15 ou R$ 18, dependendo do horário.”
Para Rafael Morais, a modalidade de moto nos aplicativos se tornou uma alternativa prática e econômica. “Desde que começou a opção de moto, tanto no Uber quanto no 99, eu gostei porque acho muito prático. Já quase caí de moto, já quase sofri acidente, mas continuo usando porque é rápido e barato”, afirma.
Passageiros relatam queda na qualidade do atendimento e redução de motoristas nas ruas
“Eu não vou nem pelo mais barato, eu vou pelo mais rápido. Uber geralmente é mais rápido que a 99. A diferença é mínima, coisa de R$ 1 ou R$ 2. O que pesa mesmo é a rapidez”, afirma Nora Rodrigues. O problema, segundo ela, é que essa agilidade tem se tornado cada vez mais rara. “A dificuldade aqui está sendo frequente, não sou só eu, muitos estão reclamando que está demorando muito. Esses dias eu tinha uma consulta e fiquei meia hora esperando o Uber”
A passageira admite que já desistiu de corridas pela demora. “Muitas vezes já deixei de usar pelo tempo de espera. Você fica 15, 20 minutos esperando o Uber e nada. Aí passa o ônibus, eu falo: então vou de ônibus.”
Para os motoristas, o problema é reflexo dos valores propostos. “O passageiro reclama que tá difícil pegar Uber. Eu falo que por causa da taxa o motorista não aceita. Vocês vão ficar esperando mesmo, porque enquanto a Uber não melhorar a taxa do motorista, quem sofre é o passageiro”, explica Vinícius.
Além da espera, passageiros relatam mudanças no atendimento. “Lembro quando o aplicativo chegou aqui pela primeira vez, você tinha aquela coisa de ver uma água, uma balinha, a delicadeza, a cortesia. Hoje não se vê mais isso. Às vezes o motorista está super mal-humorado, estressado, vem com uns papos estranhos. Parece que está na moda ser grosseiro”, avalia Rafael.
Época de festas e concursos ampliam a procura por corridas e atraem motoristas de fora da cidade
Os grandes eventos de Montes Claros transformam a rotina do transporte por aplicativo, sobretudo no período noturno. O motorista Vinícius Tadeu explica que datas festivas e shows aumentam significativamente a procura por corridas. “Evento tem bastante. São três, quatro eventos bem grandes durante o ano. Fora shows, como a Baianeira, que duram uma semana inteira. Todo mundo pede carro, principalmente à noite. Final de ano tem as formaturas que também movimentam muito”, afirma.
O colega Gildesio Pereira reforça que concursos públicos e festas locais são períodos de alta demanda. “Quando tem concurso, aí sim você tem mais gente para levar e buscar. E em shows, o movimento maior é no final do evento. Quando chove ou tem festa grande, a demanda cresce muito”, explica.
A passageira Nora Rodrigues confirma essa vocação festiva da cidade e ressalta como ela impacta o setor. “Aqui tem festa o ano inteiro. Para quem gosta, tem festa todo final de semana: vaquejada, cavalgada, Expomontes… sempre tem alguma coisa. Os barzinhos estão sempre lotados a noite, de segunda a segunda”, descreve.
Do lado dos passageiros, o reflexo também é percebido no aumento da oferta de motoristas, inclusive de fora da cidade. Rafael Morais observa que os aplicativos chegam a atrair até moradores de municípios vizinhos. “Tem festa, tem shows, tem evento, então isso faz com que muita gente, inclusive pessoas que são de cidadezinhas próximas, venham trabalhar com carro de aplicativo aqui. Já conheci vários motoristas que não eram daqui, que só vinham para Montes Claros nesses períodos”, relata.
Ausência de lei municipal mantém transporte por aplicativo sem regras locais, limitado apenas à legislação federal
Montes Claros ainda não possui uma lei municipal específica que regulamente esse tipo de serviço. Hoje, a atividade segue apenas a legislação federal, estabelecida pela Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei nº 12.587/2012) e pela Lei nº 13.640/2018, que delega aos municípios a competência de criar normas próprias para o setor.
Na prática, a cidade ainda não definiu regras locais sobre requisitos para os veículos, cadastro de motoristas ou fiscalização. Enquanto isso, o município mantém regulamentação apenas para o transporte coletivo urbano.
A equipe de reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Montes Claros e com a empresa MCTrans, responsável pelo transporte público na cidade, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.