O deputado federal Augusto Coutinho apresentou na noite desta terça-feira (9), o substitutivo ao PLP 152/2025, que regulamenta o trabalho por app no Brasil.
O relatório reconhece a figura do “trabalhador plataformizado”, mantém esses profissionais como não subordinados — portanto, sem vínculo empregatício —, mas cria um regime jurídico próprio que combina flexibilidade com direitos mínimos, proteção previdenciária e responsabilidades para as empresas operadoras de plataformas digitais.
Quem entra na lei e quem fica fora
Pelo texto, plataforma digital passa a ser, formalmente, qualquer aplicativo ou site que use algoritmos para organizar, distribuir e precificar serviços de:
- transporte remunerado privado individual de passageiros;
- coleta e entrega de bens de pequeno porte;
- outros serviços similares intermediados por app.
A lei não se aplica a plataformas de mera aproximação — aquelas em que o app apenas conecta cliente e prestador, sem interferir em preço, condições ou gestão do serviço.
O trabalhador plataformizado é definido como pessoa física, sem vínculo de emprego, que aceita ofertas da plataforma e executa pessoalmente esses serviços, de forma remunerada. O substitutivo também reconhece a “empresa interposta”, usada para recrutar trabalhadores, e garante que, se houver intermediação, esses trabalhadores terão os mesmos direitos previstos na lei.
O que a plataforma não pode fazer
Segundo o texto de Coutinho, as plataformas não poderão:
- exigir exclusividade;
- impor jornada mínima, tempo mínimo conectado, disponibilidade obrigatória ou controle de frequência;
- obrigar aceitação de serviços;
- criar chefia formal;
- punir trabalhador por ficar offline, recusar chamadas ou exercer direitos.
Em contrapartida, as empresas seguem podendo criar regras de segurança, padrões de qualidade, avaliações, treinamentos e incentivos. E poderão escolher apenas um dos modelos de cobrança permitidos:
- taxa fixa mensal;
- taxa por serviço (limitada a 30%);
- modelo híbrido (mensal + taxa por serviço limitada a 15%).
Contrato escrito e transparência
O substitutivo exige contrato escrito entre trabalhador e plataforma, com cláusulas mínimas obrigatórias. Esse contrato deve detalhar:
- como a remuneração é calculada e paga;
- fatores que influenciam ordem e distribuição de serviços;
- critérios de avaliação de trabalhadores e usuários;
- quais dados pessoais são coletados e para quê;
- valor/percentual e forma de cobrança das taxas;
- regras de reembolso em retenções indevidas, com multa mínima de 15%.
A empresa é responsável por garantir o pagamento ao trabalhador mesmo quando permite pagamento posterior ao usuário, e precisa manter o contrato acessível digitalmente, com histórico de alterações.
Como fica a remuneração
A remuneração bruta passa a ser tudo o que o trabalhador recebe via apps no mês, incluindo gorjetas. Mas, para motoristas e entregadores, a lei fixa uma divisão rígida:
- 25% = contrapartida pelo serviço (ganho real);
- 75% = indenização de custos da atividade (gasolina, manutenção, equipamentos).
Tributos e contribuições só incidem sobre os 25%. E a lei proíbe manipular essa divisão via acordos para reduzir artificialmente a base tributável.
Com essa divisão, o trabalhador plataformizado passa a ser contribuinte individual do RGPS. O salário de contribuição será apenas a parte considerada “ganho real” — os 25% da remuneração bruta mensal, somando o que ele recebeu em uma ou mais plataformas. Sobre essa base incide uma alíquota única de 5%, respeitado o teto do INSS.
Para mostrar como isso funciona na prática, o relator traz exemplos oficiais:
- motorista que fatura R$ 4.000/mês: contribuição calculada sobre 25% disso (R$ 1.000). Paga R$ 50/mês ao INSS
- entregador que fatura R$ 2.800/mês: base de 25% (R$ 700). Paga R$ 35/mês ao INSS
O modelo é compulsório (não depende de adesão voluntária), mas mais barato do que a contribuição normal. Além disso, permite complementação futura, para que o trabalhador possa aumentar contribuições ao longo da vida e melhorar o valor do benefício lá na frente.
Se a pessoa trabalha em vários apps ou tem outro emprego, as contribuições se somam até o teto previdenciário, com devolução automática do excesso.
O nexo entre acidente/doença e trabalho será analisado pela perícia federal com uso de dados de conexão, geolocalização e registros do app — reconhecendo o risco alto da atividade.
Se o salário de contribuição do entregador ficar abaixo do mínimo proporcional às horas trabalhadas (valor-hora do salário mínimo), a plataforma deverá complementar a base e recolher a diferença sem custo para o trabalhador.
O que muda no bolso das empresas: contribuição patronal inédita
Pela primeira vez plataformas serão obrigadas a pagar contribuição previdenciária patronal, em dois regimes:
1) Apps com taxa variável por serviço
Contribuição incide sobre a parte remuneratória do trabalhador (25%), com:
- 20% para seguridade social
- +2% para acidentes/doenças ocupacionais
- total: 22%
Se a empresa cobrar taxa acima de 20% por serviço, a alíquota sobe progressivamente até 23% no teto de 30% de retenção.
2) Apps com taxa fixa mensal ou híbrida leve
Se cobrarem assinatura fixa, híbrido com taxa até 15% ou taxa por serviço até 20%, contribuem sobre a receita bruta no Brasil:
- 10% para seguridade
- +2% para acidentes
- total: 12%
A plataforma ainda fica obrigada a cadastrar trabalhadores no INSS, descontar a contribuição do trabalhador, recolher mensalmente e prestar informações ao governo. Se errar ou deixar de recolher, a responsabilidade é dela, não do trabalhador.
Direitos
O texto lista uma série de garantias aos trabalhadores, incluindo:
- adicional noturno (22h–5h);
- pagamento maior em domingos e feriados;
- acréscimo mínimo de 30% nos serviços de dezembro;
- limite de 12 horas de conexão diária;
- postos de apoio para descanso, alimentação, banheiro etc.;
- possibilidade de reserva financeira voluntária (5% a 20% da contrapartida), custodiada pela plataforma com correção equivalente à poupança;
- direito a revisão humana de decisões algorítmicas;
- gorjetas repassadas integralmente;
- proibição de repassar ao trabalhador descontos e promoções dadas ao usuário.
Seguro obrigatório pago pela plataforma
A lei cria seguro obrigatório custeado integralmente pela empresa, sem franquia e sem carência, cobrindo:
- acidentes pessoais;
- invalidez temporária/permanente;
- morte;
- assistência médica emergencial;
- danos a terceiros.
A cobertura vale do aceite até 20 minutos após terminar/cancelar o serviço, inclusive em cancelamento injustificado do usuário. O capital mínimo é de R$ 120 mil, corrigido pelo INPC.
Regras específicas para motoristas de app
Para transporte de passageiros, a lei define pontos como:
- piso de R$ 8,50 por corrida de carro até 2 km (corrigido anualmente);
- cancelamento legítimo em situações de risco, usuário diferente do solicitante, excesso de bagagem ou comportamento inadequado;
- botão de pânico integrado a autoridades;
- opcional de gravação de áudio e vídeo durante corrida com remuneração maior;
- possibilidade de mulheres atenderem apenas usuárias, se desejarem.
Regras específicas para entregadores
Para entregas, o texto prevê:
- piso de R$ 8,50 para distâncias curtas (até 3 km em carro; até 4 km a pé, bicicleta ou moto);
- cancelamento legítimo quando cliente se recusa a receber na portaria, salvo exceções (como serviço especial contratado ou pessoa com deficiência/mobilidade reduzida);
- remuneração mínima para entregas agrupadas:
- 1ª entrega: valor integral da maior;
- 2ª entrega: 50% da maior;
- a partir da 3ª: 25% da maior.
- 1ª entrega: valor integral da maior;
Benefícios fiscais e enquadramento tributário
O substitutivo estende benefícios fiscais de IPI e IOF na compra de veículos para trabalhadores plataformizados que comprovarem ao menos 2.000 horas no ano, via certidão da plataforma.
Ajusta também o IBS/CBS para permitir enquadramento como nanoempreendedor, considerando como receita, para esse fim, 25% do bruto mensal. Estados e municípios podem criar incentivos fiscais próprios para carros, motos, bicicletas etc.
O texto proíbe que trabalhador plataformizado atue por CNPJ e veda adesão ao regime do MEI para essa atividade. Por outro lado, o trabalhador não paga ISS; quem paga ISS são as plataformas, sem incluir a remuneração do trabalhador na base do imposto.
Usuários: direitos e deveres, com responsabilidade do app
O texto cria contrato obrigatório também entre plataforma e usuário. A empresa responde objetivamente por danos e inadequações do serviço, salvo culpa exclusiva do usuário/terceiro/força maior. O usuário ganha direitos como:
- segurança e respeito físico/moral;
- transparência sobre quem vai prestar o serviço;
- gorjeta não obrigatória;
- créditos de gift card sem prazo de validade.
E assume deveres:
- respeitar o trabalhador;
- não exigir algo além do contratado;
- cumprir código de validação e regras do serviço;
- evitar condutas discriminatórias.
Fiscalização, multas e revisão futura
O cumprimento das regras trabalhistas será fiscalizado pela inspeção do trabalho; a parte tributária, pelo órgão fiscal competente.
Multas podem variar de 1 a 10 salários mínimos por trabalhador prejudicado e por infração, dobradas em reincidência. O texto ainda prevê revisão obrigatória da lei após três anos de vigência, com atualizações periódicas.
Quando começa a valer
A entrada em vigor é escalonada:
- artigo de contribuição sobre receita bruta (art. 17): 1º de janeiro de 2027;
- demais dispositivos: 180 dias após a publicação.