Pesquisador afirma que a autonomia do trabalhador autônomo inclui a liberdade de definir o preço do seu trabalho, o que não ocorre nas plataformas de transporte.
Durante o segundo dia de audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta terça-feira (10) para discutir o trabalho intermediado por aplicativos, Murillo Carvalho Sampaio, professor associado da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e juiz do trabalho, trouxe uma análise crítica sobre a suposta autonomia dos motoristas de plataformas digitais. Segundo o pesquisador, que coordena desde 2018 o projeto Assalariados Digitais, a promessa de autonomia oferecida pelas empresas é, na realidade, uma falácia, sustentada por condições de trabalho que não refletem liberdade genuína.
“A discussão aqui não pode ser pautada por propagandas ou argumentos distantes, mas por condições concretas. O que está em jogo é se há, de fato, autonomia ou não”, afirmou Murillo. Para embasar sua fala, ele citou decisões anteriores do STF sobre trabalho autônomo, destacando os elementos essenciais dessa modalidade: ser dono do próprio negócio, não sofrer ingerências, não estar sujeito a controles e obter proveito econômico do trabalho.
Murillo questionou a estrutura organizacional das plataformas e sua alegada autonomia, enfatizando que os motoristas não são donos do próprio negócio. “Definir o formato da atividade, o modelo e a clientela são características de um negócio autônomo. No caso das plataformas, isso não ocorre. O negócio pertence à empresa, que cria e controla o ecossistema digital”, explicou.
Como exemplo, ele comparou o modelo adotado pelas plataformas de transporte com o Airbnb, plataforma digital de locação. “No Airbnb, há liberdade de escolha: o cliente escolhe o imóvel, e o proprietário decide quem alugará. Já nas plataformas de transporte, essa liberdade não existe. O cliente não escolhe o motorista, e o motorista não escolhe o passageiro. Quem organiza o negócio toma essas decisões”, pontuou.
Outro ponto abordado por Murillo foi o déficit de contratualidade presente nos termos de uso das plataformas digitais. Segundo ele, as regras são impostas de forma unilateral e podem ser modificadas a qualquer momento, sem que os motoristas tenham qualquer poder de negociação. “Os termos de uso são contratos de adesão, nos quais apenas uma parte impõe suas condições. E o pior: eles podem ser alterados sem um novo consentimento expresso do trabalhador”, criticou.
Murillo destacou ainda que, no caso concreto da motorista Viviane, apresentada durante a audiência, a exclusão da plataforma foi consequência de uma punição pelo excesso de cancelamentos, evidenciando ingerências que negam a autonomia dos trabalhadores. “A liberdade é um componente essencial da autonomia. No entanto, há táticas mínimas de aceitação e máximas de cancelamento que claramente interferem na atuação dos motoristas”, afirmou.
A precificação das corridas foi outro ponto central da análise de Murillo. Ele argumentou que a autonomia do trabalhador autônomo inclui a liberdade de definir o preço do seu trabalho, o que não ocorre nas plataformas de transporte. “Esse modelo de negócio não permite que os motoristas precifiquem seu trabalho. A Uber fixa os valores unilateralmente, enquanto outras empresas, como a 99, permitem alguma negociação. Isso reforça a violação do dever de boa-fé objetiva e do dever de informação”, explicou.
O professor também rebateu o argumento de que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) não comporta modelos flexíveis. “Desde 1943, a CLT já admite jornadas livres e trabalhadores que recebem por produção. O capítulo do motorista empregado, incluído em 2012, regula especificamente essa categoria, sem a necessidade de uma nova legislação”, afirmou, citando ainda a decisão do STF sobre trabalho intermitente, que prevê a recusa de chamadas ao trabalho.
Ao concluir sua fala, Murillo reforçou que o trabalho autônomo genuíno exige condições reais de autonomia, e não uma promessa que não se concretiza na prática. “O trabalho autônomo vai além da flexibilidade de horários e dias. É necessário garantir que o trabalhador tenha controle sobre o seu negócio e suas condições de trabalho, algo que, atualmente, não ocorre nas plataformas digitais”, declarou.
Para o professor da UFBA, a regulação do trabalho por aplicativos é indispensável. “Não se pode comparar a situação dos motoristas de app com a regulamentação de salões de beleza ou de transportadores autônomos, porque nesses casos existe uma lei específica. Nas plataformas digitais, as empresas exercem o papel de empregador, definindo todas as regras”, concluiu.
A audiência pública no STF reuniu juristas, pesquisadores, empresas e representantes dos trabalhadores para debater o impacto das plataformas digitais no mercado de trabalho e discutir a necessidade de regulamentação desse modelo. O resultado das discussões pode afetar diretamente mais de um milhão de motoristas no Brasil.
É redundante, mas é necessário dizer que esta audiência pública é essencial para o futuro do direito do trabalho no Brasil. Embora se discuta um caso individual, o resultado desse julgamento pode afetar mais de um milhão de motoristas. Além disso, ele permitirá identificar qual é o maior empregador do Brasil.
Minha fala aqui não é como juiz do trabalho da Bahia, mas como pesquisador que, desde 2018, coordena o projeto de pesquisa Assalariados Digitais, que investiga diversas plataformas digitais, como Uber, 99, iFood, GetNinjas, Parafuso, entre outras. Nesse conjunto de pesquisas, entrevistamos mais de 300 trabalhadores.
O ponto central da minha apresentação é discutir qual regime jurídico se aplica ao trabalho autônomo em plataformas digitais, mas sob uma perspectiva diferente do que foi apresentado até aqui. Não tratarei de propagandas ou argumentos distantes, mas das condições concretas, que de fato questionam a autonomia desses trabalhadores.
No início, tomo como referência duas manifestações do Supremo Tribunal Federal sobre trabalho autônomo. Na ADC-48 do Distrito Federal, o ministro Luís Roberto Barroso afirmou que “transportador autônomo é aquele que é dono do seu negócio”. Já na Reclamação 74.118 de Minas Gerais, a ministra Cármen Lúcia destacou que o “trabalhador autônomo exerce sua atividade em proveito próprio e sem ingerência do tomador quanto ao modo de realização do trabalho”.
Com base nisso, temos quatro elementos que caracterizam o trabalho autônomo: ser dono do próprio negócio, não sofrer ingerências, não estar sujeito a controles e obter o resultado econômico do seu trabalho.
Vamos aprofundar esses pontos:
- Ser dono do negócio: O que significa, objetivamente, ser dono de um negócio? Significa definir a atividade, o formato, o modelo e a clientela. Contudo, no caso das plataformas digitais, o negócio não pertence ao motorista, mas à empresa que cria e controla o ecossistema digital. Os clientes, inclusive, não são do motorista, mas da plataforma. Se fosse um trabalho autônomo, a clientela faria parte do patrimônio do motorista, o que não ocorre.
- Regras unilaterais: As regras do negócio são estabelecidas de forma unilateral e frequentemente modificadas nos chamados “termos de uso”. Como o professor Fachin já observou, há um déficit de contratualidade aqui. Os termos de uso são contratos de adesão, nos quais apenas uma parte impõe suas condições, direitos e obrigações. Mais grave ainda, esses termos podem ser alterados a qualquer momento, sem um novo consentimento expresso do trabalhador.
- Liberdade de escolha: Façamos uma comparação com o Airbnb, outra plataforma digital. No modelo do Airbnb, há liberdade de escolha entre os participantes: o cliente escolhe o imóvel e o proprietário escolhe quem alugará. No caso das plataformas de transporte, não existe essa liberdade. O cliente não escolhe o motorista, e o motorista não escolhe o passageiro. Quem organiza o negócio realiza essa escolha.
- Ausência de ingerência: A liberdade é um componente essencial da autonomia. Entretanto, há claras ingerências nas plataformas digitais, como táticas mínimas de aceitação e máximas de cancelamento. A exclusão de uma motorista, como no caso concreto da senhora Viviane, foi resultado de uma punição por excesso de cancelamentos.
Além disso, é um equívoco afirmar que a CLT não comporta trabalho flexível. A CLT já prevê, desde 1943, trabalhadores que têm jornada livre, recebem por produção e não precisam bater ponto, conforme o exemplo do trabalho intermitente. O capítulo do motorista empregado, adicionado à CLT em 2012, regula especificamente essa categoria, sem a necessidade de uma nova legislação.
Outro ponto relevante é a precificação. O trabalhador autônomo define o preço do seu trabalho e, consequentemente, seu lucro. Nas plataformas, isso não acontece. A Uber, por exemplo, fixa os valores das corridas unilateralmente, enquanto outras plataformas, como a 99, permitem alguma negociação. Essa ausência de autonomia na precificação reforça o déficit contratual e a violação do dever de boa-fé objetiva.
Por fim, comparações com outros modelos, como o salão de beleza ou o transporte autônomo, são inadequadas. Nesses casos, há uma legislação específica que regula a relação. No caso das plataformas digitais, não há essa regulação. A empresa decide unilateralmente as condições, ocupando a posição de empregador.
Em conclusão, o trabalho autônomo não se resume à flexibilidade de tempo, horários ou dias trabalhados. É preciso garantir que essa autonomia seja real e genuína, e não uma promessa falaciosa que não ecoa na realidade dos trabalhadores.
Muito obrigado!
Murilo Carvalho Sampaio