A venda de produtos através de kits dentro de carros de apps tipo Uber oferece uma opção de renda extra para os motoristas, mas requer cuidados.
Nos últimos anos, os motoristas de aplicativos de transporte têm buscado novas maneiras de complementar sua renda, e uma tendência que tem ganhado destaque é a venda de produtos dentro dos próprios veículos.
Desde produtos alimentícios até cosméticos, essa prática vem crescendo, mas traz consigo questionamentos sobre segurança e impacto na experiência do usuário.
A experiência dos motoristas
Em 2021, Mattheus Alencar, motorista de aplicativo, incentivou sua esposa e uma amiga a abrirem uma loja de maquiagem em Goiânia. Devido à pandemia, a loja enfrentou dificuldades e acabou fechando, deixando um grande estoque parado em casa. Em busca de uma solução, Alencar conversou com um amigo que já vendia produtos dentro do carro, e decidiu criar uma estrutura dentro do veículo: “Eu tive a visão desse negócio. Desenhei num papel e coloquei em prática dois dias depois”. Ele afirma que a ideia foi bem recebida e começou a ser divulgada nas redes sociais.
Inicialmente, Alencar e seu amigo eram os únicos com essa loja móvel. Utilizando o estoque de maquiagem parado, ele montou uma estrutura atrás do banco do carro: “Na minha terceira viagem, eu fiz uma venda de R$ 85,00 para duas passageiras”. A partir daí, Alencar viu uma oportunidade de renda extra e começou a desenvolver estruturas para outros motoristas.
Alencar revelou que os produtos mais vendidos são maquiagem e perfumes de bolsa, principalmente para o público feminino: “A reação dos passageiros é de surpresa, de inovação, de novidade” afirmou. Ele mencionou que os passageiros elogiam a ideia e que isso melhorou suas avaliações.
Atualmente, ele afirma que mais de 500 motoristas de todo o país utilizam a “loja em movimento”: “Hoje o pessoal agradece muito pela oportunidade” comentou. Ele destacou que as vendas muitas vezes superam os ganhos das corridas: “Já fiz R$500 de venda, R$800 de venda para uma única passageira”.
Alencar contou que em um mês pode faturar entre R$ 5.000 e R$ 6.000 com as vendas dentro do carro: “Já teve gente que fez R$10.000, eu já fiz R$12.000 já dentro de um mês.”
Mattheus enfatiza que a presença da loja no carro não gera reclamações: “Na verdade, os passageiros elogiam demais,” disse. Ele acredita que a loja móvel melhora a qualidade do serviço prestado: “Hoje, quem tem a loja, um dos requisitos que eu passo é andar com o carro limpo, se vestir bem, ar-condicionado ligado.”

Wesley Milhomens também adotou a venda de produtos como uma estratégia para aumentar seus ganhos, oferecendo perfumes importados e produtos de skincare durante as corridas: “Os passageiros já entram no carro e já acham uma maravilha, né? Uma coisa inovadora”, comenta. Segundo Wesley, a maioria dos passageiros reage com entusiasmo e muitos acabam comprando os produtos. A renda das vendas tem sido um complemento essencial para ele: “Hoje em dia meu lucro maior é nas vendas, o aplicativo mesmo é mais para captar os clientes”.
Apesar das variações diárias nos lucros, Wesley destaca a importância da venda de produtos para seu orçamento. Em alguns dias, ele consegue faturar mais com as vendas do que com as corridas: “Eu já cheguei a fazer, por exemplo, 300 e pouco de aplicativo e fazer 500 e pouco de venda”, exemplifica.
Wesley afirma que nunca enfrentou problemas ou reclamações por parte dos passageiros ou da empresa de aplicativos devido à sua prática de vendas.
O motorista Guilherme Rodrigues começou a vender pipocas gourmet produzidas por sua esposa durante as corridas de aplicativo: “Minha esposa começou a produzir as pipocas gourmet e criou um insta para divulgação, aí veio a ideia de levar em uma cesta algumas para apresentar aos passageiros e aumentar os seguidores”, conta.
O sucesso foi tanto que ele ficou conhecido como “o uber das pipocas”. Segundo ele, a aceitação dos produtos tem sido positiva, com muitos passageiros demonstrando curiosidade e apreciando o caráter artesanal das pipocas: “A maioria deles escuta e reage bem quando explico que é um produto artesanal onde minha esposa e eu estamos empreendendo”.
A venda das pipocas não só trouxe reconhecimento, mas também uma significativa complementação de renda para a família de Guilherme: “A pipoca se tornou uma terceira renda familiar, com a qual podemos adquirir coisas que só o salário fixo não nos permitia”. Atualmente, ele estima que um terço da renda familiar venha das pipocas. Guilherme destaca a importância de respeitar os passageiros que não demonstram interesse e garante que nunca teve problemas com a empresa de aplicativos ou reclamações dos clientes.

O lado dos passageiros
A venda de produtos por motoristas de aplicativos não só ajuda a complementar a renda desses trabalhadores, mas também proporciona uma experiência diferenciada para os passageiros.
A jornalista Júlia Vianna relata uma experiência interessante ao encontrar uma motorista que expunha vários produtos na parte traseira do carro, junto com uma tabela de preços. Durante a conversa, seu namorado perguntou sobre os produtos, e a motorista explicou que itens como desodorante eram especialmente populares durante o carnaval.
Júlia relata que achou a ideia válida, contanto que os produtos fossem discretamente expostos e não oferecidos de forma insistente. Ela também destacou a utilidade de alguns produtos, especialmente em contextos específicos: “No caso de produtos úteis e criativos, como desodorante no carnaval, é muito útil, principalmente no contexto em que ela tava.” No entanto, Júlia mencionou que se sentiria mais segura comprando produtos não alimentícios e que a abordagem do motorista era crucial para a experiência ser positiva.
O estudante Heitor Leite teve uma experiência semelhante, encontrando produtos expostos no suporte traseiro do veículo, sem que o motorista os oferecesse diretamente. Ele vê essa prática de forma positiva, entendendo a necessidade dos motoristas de complementarem sua renda: “Não é algo que me incomoda, pois acredito que é uma forma do motorista conseguir renda, visto que os aplicativos, geralmente, não repassam um valor justo da corrida para eles.”
Apesar de nunca ter comprado, Heitor reconhece a facilidade oferecida: “A praticidade para o passageiro é o principal ponto positivo, se você está preso no trânsito e bate uma fome, você tem algo ali para te ajudar.”
Ele ressalta a importância de verificar a segurança dos produtos antes da compra e entende que alguns passageiros podem se incomodar com essa prática: “Vivemos num contexto em que não podemos aceitar qualquer coisa, então é importante ter cuidado com o que comprar.”
Vendas além dos produtos físicos
A prática de vendas dentro dos carros de aplicativos não se limita apenas a produtos físicos. Motoristas podem oferecer uma variedade de serviços e produtos digitais, ampliando suas oportunidades de renda sem a necessidade de transportar e armazenar mercadorias.
Neste contexto, o aplicativo de transporte Ubiz Car lançou o projeto Ubiz Cred, com o objetivo de proporcionar ganhos adicionais aos seus motoristas parceiros. Alecio Cavalcante, CEO da Ubiz Car, explicou que o Ubiz Cred foi desenvolvido em parceria com a empresa Presença para “compensar possíveis perdas de renda devido a novas regulamentações e oferecer uma nova fonte de receita.”
O projeto se concentra na venda de produtos financeiros, como empréstimos e parcelamentos, evitando a complexidade associada à comercialização de produtos físicos. Cada motorista recebe um QR Code individual, que pode ser utilizado para indicar potenciais clientes para operações de crédito. Esses códigos podem ser divulgados de várias maneiras, incluindo adesivos no carro e cartões de visita: “Ele apenas terá que indicar o seu QR Code,” destacou Alecio.
Ele explica que, ao indicar um cliente através do QR Code, o motorista não precisa se envolver diretamente com o processo de venda. A plataforma Ubiz Cred acompanha toda a transação, desde o clique inicial até a aprovação do crédito: “Os motoristas recebem comissões por essas indicações,” acrescentou Alecio.
O Ubiz Cred oferece quatro linhas principais de crédito: empréstimos para pensionistas, parcelamento via Pix, antecipação do FGTS e empréstimos vinculados à conta de energia. As comissões para os motoristas variam, podendo chegar a 4% por operação, dependendo do tipo de serviço financeiro contratado pelo passageiro.
Segundo o CEO, cerca de 800 motoristas estão cadastrados no Ubiz Cred: “A cidade de Itatiba foi escolhida como projeto piloto para testar as melhores práticas de divulgação e operacionalização” mencionou. Os motoristas estão sendo orientados sobre como maximizar seus ganhos utilizando as ferramentas fornecidas pela plataforma.
Ele conta que o projeto Ubiz Cred visa facilitar a integração dessas novas operações na rotina dos motoristas, permitindo-lhes aumentar sua renda sem complicações adicionais.
As plataformas ajudam a vender?
Tanto a Uber quanto a 99 já implementaram medidas relacionadas à venda de produtos.
Em meados de 2019, a Uber firmou uma parceria com os Postos Ipiranga e a empresa Cargo, especializada em lanches rápidos. A Cargo produzia kits com doces e guloseimas que os motoristas da Uber no Rio de Janeiro e São Paulo podiam retirar gratuitamente nos postos. Os motoristas acomodavam os produtos no apoio de braço e os passageiros podiam acessar o cardápio e comprar os itens escaneando um QR code no banco ou acessando o site da Cargo. Após escolher o produto e efetuar o pagamento, o sistema notificava o motorista sobre qual item deveria ser entregue ao passageiro, e o motorista recebia uma comissão pela venda. No entanto, a empresa deixou de operar no Brasil, e a Uber não firmou mais parcerias nesse sentido.
Em 2023, a 99 anunciou o 99Shop. A iniciativa faz parte do DriverLAB, e foi lançada como projeto piloto em São Paulo, e permite aos motoristas da 99 vender produtos durante as corridas, aumentando seus ganhos e oferecendo mais conveniência aos passageiros.
Na época, a plataforma afirmou que nesse modelo os motoristas podem obter até 50% do valor das vendas, intermediando a comercialização de itens como alimentos e produtos de higiene. A gestão das vendas é feita pelo aplicativo MerchOnii, que permite controlar preços, estoque, lucros e emissão de notas fiscais.
Segundo o site da empresa, para participar os motoristas devem estar registrados na 99 em São Paulo, possuir uma câmera de segurança da 99 e completar um número mínimo de corridas. Segundo a empresa, a instalação dos produtos é gratuita e feita nas Casas99 de Santo Amaro e Tatuapé, onde também podem reabastecer os itens vendidos. Os motoristas têm a flexibilidade de ajustar os preços dos produtos pelo aplicativo e garantir transparência com a emissão automática de notas fiscais para cada venda.
Ao ser contatada pela equipe do 55content para esta matéria, a 99 preferiu não participar.
A perspectiva da segurança
Thyrso Guilarducci, especialista em segurança no trânsito, alerta para os principais riscos associados aos veículos de aplicativo que também operam como lojas móveis. No aspecto da direção, distrações podem surgir quando o motorista consulta tabelas de preços, verifica referências em celulares ou negocia com clientes: “Normalmente os passageiros sentam-se no banco traseiro e o motorista tenta voltar para trás visando alguma explicação de produto” explica Thyrso. Ele ressalta que mesmo alguns segundos de distração podem resultar em acidentes de trânsito, como colisões traseiras, atropelamentos ou perda de controle do veículo.
Embora Thyrso desconheça evidências concretas de que veículos de aplicativos que funcionam como lojas aumentam a incidência de infrações de trânsito, ele reconhece a probabilidade: “Há sim probabilidades pela possibilidade de reduzir o foco na condução do veículo” diz ele, destacando que motoristas podem esquecer de sinalizar conversões ou se distrair enquanto tentam entregar ou mostrar produtos ao passageiro com o veículo em movimento.
Para promover a conscientização sobre a segurança desses veículos, Thyrso sugere campanhas de alerta sobre os riscos de distrações, mas que não é contra a prática: “A campanha não deve desestimular esse mercado que certamente ajuda no orçamento do motorista, mas que seja dentro de parâmetros de segurança no trânsito e da integridade do passageiro e motorista”.
Mauricio Rabelo, também especialista em segurança no trânsito, afirma que reconhece que as vendas podem agir como um reforço para a renda do motorista, então não condena a prática. No entanto, reitera que as vendas não devem ser feitas durante o percurso: “Desde que não seja enquanto dirigem, não vejo problema algum”.
A venda de produtos dentro de veículos de aplicativos se mostra como uma oportunidade valiosa para motoristas aumentarem sua renda. No entanto, é importante equilibrar essa prática com a segurança e a experiência do passageiro. Com cuidados adequados e inovações no mercado, essa tendência tem potencial para se consolidar como uma estratégia benéfica para todos os envolvidos.