Motoristas reclamam de bloqueios e até mesmo banimentos permanentes nos grandes aplicativos de transporte.
Nos últimos anos, os bloqueios e banimentos de motoristas por plataformas de transporte por aplicativo têm se tornado um tema de preocupação. Motoristas têm relatado bloqueios sem explicação clara, enquanto as plataformas alegam seguir políticas de segurança e qualidade do serviço. A falta de transparência nesses processos levanta questões sobre direitos trabalhistas e a legalidade dessas práticas.
É o caso do motorista de aplicativo, Daniel Nogueira que relata um incidente ocorrido em um dia de trabalho:
“Passei o dia inteiro trabalhando e, no dia seguinte, meu aplicativo estava bloqueado com a informação de que minha conta precisava de atenção. Fui investigar o motivo e me informaram que um passageiro havia reportado que o carro utilizado não era o mesmo cadastrado na plataforma. O passageiro não apresentou provas de que o carro era diferente, foi apenas a palavra dele, e a Uber acatou essa reclamação. Como motorista, que eles chamam de parceiro, não me deram direito de defesa.”
Daniel conta que a plataforma não fornece justificativa, apenas informa que a parceria foi encerrada e que não há nada que possa ser feito. “A maioria dos motoristas adquirem seus carros por meio de financiamento. Este bloqueio me deixou com dívidas, pois fiquei com um financiamento de 60 parcelas do carro, sem ter como trabalhar para pagar”, lamenta o motorista.
Emiliano Poglia Morales, motorista de aplicativo que trabalha na região de Balneário Camboriú, também enfrentou uma situação adversa com o bloqueio pelos aplicativos:
“Fui ligar o aplicativo e apareceu uma mensagem dizendo que eu precisava entrar em contato com a Uber sobre a minha conta, que eu tinha sido bloqueado. Foi bem chato, aquele barulho de notificação é até traumatizante. Entrei em contato com eles e me disseram que eu tinha duas contas, uma duplicada. Daí, fui na Uber em Florianópolis pela primeira vez, mesmo morando em Balneário Camboriú, e me disseram que foi um erro e que iam resolver, mas não resolveram. Passou um tempo, fui lá de novo e nada foi resolvido. Não sabiam me dar uma justificativa clara, mas acredito que foi porque minha taxa de aceitação era baixa. Eu cancelava muitas corridas buscando viagens melhores, o que deixava minhas taxas baixas. Acho que foi por isso, mas eles não quiseram admitir.”
O motorista, cuja avaliação era 4.98, considerada alta, não via motivo aparente para o bloqueio. Morales decidiu baixar o aplicativo da 99, apesar de não ter gostado dele quando morava em Porto Alegre. Para sua surpresa, começou a perceber que a nova plataforma proporcionava mais lucro. Ele ficou bloqueado por três meses, tentando resolver a situação. Durante esse período, foi cerca de quatro vezes à central da Uber, mas só recebia respostas evasivas.
“Até que um dia procurei uma advogada e comecei a enviar a documentação para ela iniciar um processo. Na manhã seguinte, acordei desbloqueado. Parecia que a Uber tinha um microfone no meu aplicativo e ouviu minha conversa com a advogada. Foi uma loucura, muito confuso. A Uber é suja. A 99 também tem seus problemas, mas pelo menos me deu algum retorno”, finaliza o motorista.
Milhares de Ações Judiciais Contra Empresas de Aplicativos: “Já Tentamos de Tudo”
Consultado, o Sindicato dos Motoristas de Aplicativos do Rio de Janeiro (Sindmobi) diz que possui mais de 5 mil ações judiciais contra a Uber, 99 e iFood. Luiz Corrêa, Presidente do Sindmobi revela que até o momento, o sindicato conseguiu desbloquear mais de 1.000 trabalhadores, porém muitos outros processos ainda estão aguardando sentença.
“Os motivos para os bloqueios são diversos, mas a maioria das empresas alega má utilização da plataforma sem especificar a razão exata do bloqueio. Na maioria das vezes, conseguimos acordos para o desbloqueio, pois as empresas não conseguem comprovar as acusações infundadas contra os trabalhadores de aplicativos. Já apresentamos uma solução para essas empresas com o objetivo de diminuir o número de ações judiciais. A federação dos motoristas de aplicativos, que representa 25 sindicatos estaduais, tem mais de 40 mil processos em tramitação”, explica o sindicalista.

Foto: Arquivo pessoal
Corrêa afirma que o sindicato está à disposição das empresas para atuar como um filtro em todos os casos de bloqueio, analisando cada situação e fazendo a defesa necessária, evitando assim novas ações judiciais. No entanto, ele lamenta que o esforço venha apenas de um lado:
“As empresas de aplicativos estão focadas na exploração do trabalho e não abrem espaço para negociação. Já tentamos de tudo. É necessário uma lei que estabeleça regras claras. Por isso, a regulamentação federal dos aplicativos é o único instrumento capaz de promover mudanças”, finaliza.
“Parceria encerrada de forma abrupta e unilateral, sem que o motorista tenha direito à defesa”
Denis Moura, motorista de app, diretor de comunicação da Fembrapp (Federação dos Motoristas de Aplicativo do Brasil) e presidente da AMPA-RJ diz que a questão dos bloqueios e banimentos apresenta várias preocupações. “Primeiro, os motoristas são pegos de surpresa, sem um critério claro. Além disso, as mensagens enviadas pela plataforma não explicam claramente o motivo do banimento. Falta transparência e um ambiente de defesa adequado para o motorista. Ele recebe apenas a informação de que foi banido ou que sua conta está suspensa, sem oportunidade de se defender. Quando o motorista tenta ir a um escritório da empresa, muitas vezes é barrado na recepção e perde o acesso ao aplicativo. Isso significa que a parceria é encerrada de forma abrupta e unilateral, sem que o motorista tenha direito à defesa.”
Questionado sobre como as associações atuam para defender os motoristas nesses casos, Moura diz que normalmente são disponibilizados advogados sem custo para os motoristas, que entram com ações contra a plataforma, e, na maioria das vezes, ganham essas ações.
“Motorista não sabe quem o acusou”
Denis exemplifica como seria a maneira correta de proceder:
“Se um passageiro acusa o motorista de racismo, homofobia ou algo do tipo, ele deveria ir a uma delegacia, fazer uma queixa e apresentar isso à plataforma para que o motorista fosse banido. Assim, o motorista teria a chance de se defender. No entanto, o que acontece é que você atende 25 corridas em um dia, e no dia seguinte está banido, sem saber quem te acusou ou o motivo da acusação. Isso impossibilita sua defesa.”
Ele afirma que essa situação cria uma dificuldade enorme quando o motorista vai à delegacia registrar uma ocorrência contra a plataforma ou o passageiro que o denunciou, pois ele não sabe quem o acusou. “Para evitar possíveis complicações com o passageiro, a plataforma prefere banir o motorista de maneira covarde”, acrescenta.

Fonte: Reprodução/YouTube
Moura explica que não existe nenhum tipo de negociação ou diálogo entre plataformas e as associações de motoristas sobre este assunto: “As plataformas normalmente agem de acordo com suas próprias vontades. Elas têm o hábito de apenas falar, sem ouvir os motoristas ou abrir espaço para negociações, o que demonstra uma falta de disposição para ouvir e considerar as demandas dos motoristas.”
Ele complementa explicando que o banimento tem uma característica unilateral: “Apenas a plataforma determina o motivo, muitas vezes baseando-se em interesses próprios de regular o mercado ou em algo que o passageiro diz, sem necessidade de comprovação. Isso faz com que os motoristas nunca aceitem facilmente essa questão do banimento.”
Por fim, Moura diz que as principais alterações que seriam interessantes para as plataformas envolvem três pilares problemáticos para os motoristas: tarifa, segurança e respeito.
Segundo ele, a tarifa deve ser justa, com uma taxa fixa e clareza na cobrança e no pagamento das corridas. Isso já melhoraria a situação dos motoristas. Quanto à segurança, as plataformas deveriam melhorar os cadastros, pois atualmente qualquer pessoa pode se cadastrar.
“Os motoristas pagam caro para receber corridas, mas frequentemente acabam atendendo passageiros que podem ser perigosos, resultando em roubos e outras situações arriscadas. Além disso, as plataformas não oferecem suporte adequado em casos de acidente, assalto, roubo ou lesões. O seguro existente geralmente cobre apenas casos de morte, e mesmo assim, apenas se o motorista estiver com um passageiro no carro ou a caminho de uma corrida. Isso precisa mudar.”
Em relação ao respeito, Moura afirma que a questão do banimento é um exemplo claro. “Os motoristas nunca são ouvidos e as decisões são tomadas unilateralmente, sempre de acordo com os interesses da plataforma. As necessidades e preocupações dos motoristas são frequentemente ignoradas”, conclui.
“Reclamante deveria apresentar provas”
O presidente da Fembrapp e motorista de aplicativo, Paulo Xavier Junior, explica que o principal problema é que os banimentos são unilaterais e baseados em qualquer denúncia, muitas vezes falsas, feitas pelos passageiros. “Não apoiamos erros cometidos pelos motoristas, mas para uma simples reclamação, o reclamante deveria apresentar provas, e para casos graves, uma ocorrência policial seria necessária. Os demais casos, que são apenas reclamações, precisam ser investigados antes de desativar os motoristas.”

Fonte: Paulo Xavier Junior para 55content
Paulo Xavier assegura que as associações dos motoristas de apps têm parcerias com escritórios jurídicos. “Representamos a categoria em ações extrajudiciais na intermediação entre motoristas e plataformas, já que as plataformas são frias com atendimentos robotizados.”
Assim como Denis Moura, Paulo Xavier revela que as plataformas não promovem diálogos sobre o tema, sendo que a única discussão ocorreu durante as audiências públicas.
“Os motoristas necessitam de ganhos justos que considerem seus custos e lucros reais. Eles devem ter autonomia para escolher seus representantes, decidir como querem contribuir para o INSS, ter o direito a respostas claras, e a opção de manter e continuar contribuindo como Microempreendedores Individuais (MEI)”, concluiu o presidente da Fembrapp.
“Regulamentação é a Solução”: Sindicalista defende o PLP 12/2024 para proteger motoristas
A equipe do 55content conversou com Leandro da Cruz Medeiros, Presidente do Sindicato dos Motoristas de São Paulo e um dos redatores do PLP 12/2024, que visa regulamentar a categoria dos motoristas de aplicativo, sobre o assunto.
“O PLP 12 aborda o bloqueio do trabalhador, pois atualmente o trabalhador é bloqueado sem saber o motivo. Com o PLP 12, a empresa que realizar o bloqueio deverá informar o trabalhador sobre a razão e garantir seu direito de resposta, humanizando essa relação. A fiscalização dessa relação será responsabilidade do Ministério Público do Trabalho, da Superintendência e dos sindicatos, que atuam como intermediadores em conflitos de interesse”, explica Medeiros.

Foto: Reprodução/YouTube
O sindicalista destaca que a regulamentação é importante uma vez que na prática atual, o trabalhador não possui nenhum direito. “Nosso sindicato em São Paulo já possui mais de 20 mil processos contra essas plataformas devido a bloqueios e outros problemas. Quando recorremos à justiça, muitas vezes não conseguimos uma resposta favorável, pois não há reconhecimento de uma relação de trabalho. Com a regulamentação, essa relação de trabalho será formalizada, deixando claro que não somos parceiros, mas sim trabalhadores, funcionários das empresas”, revela.
Medeiros esclarece que a regulamentação pelo PLP 12 não só assegura o direito de defesa em casos de bloqueio, mas também garante o dissídio, onde será possível, através de convenções e acordos coletivos, realizar assembleias para definir as demandas dos trabalhadores para o ano vigente e seguinte. “O trabalhador passará a ter direitos em situações de falecimento, doença ou gravidez, equiparando-se aos direitos de um trabalhador comum”, conclui.
“Motoristas têm o direito de ser informados sobre os motivos do bloqueio com base na LGPD e na CLT”, diz advogada trabalhista
Do ponto de vista legal, segundo a advogada trabalhista Sol Corrêa, a legislação brasileira atualmente não possui uma regulamentação sobre o distrato específico de motoristas de aplicativos. No entanto, há alguns normativos e princípios gerais que se aplicam, como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), uma vez que o motorista presta serviço a empresa e é dispensado na maioria das vezes de forma arbitrária. Além disso, a Lei nº 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet e a Lei nº13.709/2018 – Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), estabelecem princípios, garantias, direitos e deveres para essa relação que também ocorre em ambiente digital, incluindo aspectos de transparência e proteção de dados, que podem ser interpretados em favor dos motoristas.
“Os motoristas têm o direito de ser informados sobre os motivos de qualquer bloqueio ou recusa. Primeiro, vale lembrar que o bloqueio, seja temporário ou definitivo, consiste em uma penalidade, atraindo a previsão constitucional do direito à ampla defesa e contraditório. Da mesma forma, por ocorrer em ambiente de internet no qual a empresa é controladora de dados, cabe recorrer às normas da LGPD, que protege contra práticas abusivas e impõe o dever de transparência e revisão por parte das empresas. Infelizmente, na prática esses direitos não são observados pelas operadoras, ocasionando as ações judiciais que discutem a reativação/aprovação do acesso e reparação por danos materiais e morais”, explica a advogada.
O que fazer em casos de bloqueio ou banimento?
De acordo com ela, os motoristas podem adotar várias medidas administrativas para recorrer contra bloqueios ou banimentos considerados injustos:
“Primeiramente, é essencial solicitar informações e revisão diretamente à operadora. As operadoras devem ser questionadas sobre o motivo do bloqueio, garantindo o pedido de revisão. Esse questionamento geralmente ocorre através do chat do próprio aplicativo, mas essa via se mostra pouco eficaz devido ao atendimento automatizado e mensagens padronizadas que não resolvem o caso concreto. Ainda assim, é importante esgotar essa via para, em uma possível discussão judicial, comprovar que o motorista de boa-fé buscou uma solução amigável”, detalha a advogada.

Foto: Arquivo pessoal
Além disso, Sol explica que o motorista pode enviar uma notificação extrajudicial à plataforma, solicitando a reativação da conta e explicações detalhadas sobre os motivos do bloqueio ou banimento. “Caso haja indícios de práticas abusivas generalizadas por parte da plataforma, o motorista pode denunciar o caso ao Ministério Público do Trabalho, que pode instaurar uma investigação.”
Ela afirma que se as tentativas extrajudiciais não forem eficazes, o motorista pode ingressar com uma ação judicial, inclusive sem a necessidade de contratação de advogado para causas de menor valor. Em casos mais complexos ou de maior valor, pode ser necessário entrar com uma ação na Justiça Comum, com o auxílio de um advogado especializado.
“Em todos os casos, é fundamental que o motorista mantenha registros detalhados de sua atividade e das comunicações com a plataforma para subsidiar suas alegações. Recomenda-se que os motoristas busquem sempre orientação jurídica específica para seus casos concretos, garantindo assim a defesa plena de seus direitos”, finaliza a advogada.
“Plataformas devem notificar e permitir defesa de motoristas”, diz advogado empresarial
A equipe do 55content entrou em contato com o advogado empresarial Rafael Almeida para entender quais os cuidados que as plataformas devem ter na hora de bloquear ou banir um motorista.
Ele explica que se deve ter atenção às normas e termos de uso, que são os contratos estabelecidos pelas plataformas com os usuários e motoristas. Essas normas contêm regras e orientações que devem ser respeitadas por ambas as partes. Em respeito à boa-fé e a inúmeros princípios jurídicos e sociais, é necessário notificar o motorista em todas as situações, dando a ele o direito de defesa e de se manifestar, prevenindo atitudes injustas e ilegais. É importante indicar especificamente o motivo da notificação e qual cláusula do contrato foi descumprida, para que o motorista tenha informações suficientes para se manifestar.
“O grande X da questão é que os termos de uso dessas plataformas acabam dando poderes para que elas façam o que quiserem, quando quiserem e com quem quiserem. Trata-se de um contrato civil-empresarial, ou seja, são regras entre as partes: se uma propôs e a outra aceitou, é o que está valendo. Devido ao grande número de demandas, a maior parte das triagens é feita por computadores (algoritmos), o que acaba prejudicando os motoristas na maioria das vezes. Basta uma denúncia de um passageiro maldoso para que isso gere problemas para o motorista”, finaliza o advogado.
inDrive afirma que motoristas bloqueados podem solicitar revisão do banimento
Consultada sobre o assunto, a inDrive respondeu que opera em conformidade com as leis locais e os Termos de Uso, que devem ser lidos e aceitos pelos motoristas parceiros antes de começar a usar o aplicativo, descrevendo as normas de conduta e comportamento da plataforma.
“Na inDrive, os motoristas podem ser bloqueados temporariamente ou banidos definitivamente, a depender da gravidade do incidente. Todos os casos reportados passam por uma moderação humana, que avalia o comportamento das partes envolvidas. Os motoristas bloqueados ou banidos são notificados via app e o usuário é impedido de receber novas corridas, mas existe a possibilidade de entrar em contato com o suporte para entender a motivação do bloqueio/banimento. Existe um processo de revisão de banimentos, que pode ser solicitado via suporte. A equipe especializada avalia os casos individualmente e define a pena aos envolvidos”, explica a plataforma.
Procurada pela nossa reportagem, a Uber ainda não retornou até o momento da publicação.