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A Uber vai mesmo registrar todos os motoristas como CLT? Tudo o que você precisa saber

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Aplicativos de Transporte, Motorista, Política, Uber
MPTvsUber 1
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Por Giulia Lang e Vinícius Guahy

Na última semana, o juiz do Trabalho Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, acatou um pedido de uma ação civil pública do Ministério Público do Trabalho e condenou a Uber a registrar todos os motoristas como CLT. Além disso, o juiz multou a empresa em R$1 bilhão.

Apesar disso, para especialistas contrários ou a favor da decisão, ela não irá prosperar em instâncias superiores. Além disso, ela não tem efeito imediato.

Na própria decisão, o juiz estabelece que as medidas passariam a ser cumpridas no prazo de 6 meses, a contar do trânsito em julgado (quando não houver mais recurso) e da intimação para início do prazo.

“O cumprimento se dará da seguinte forma: quando intimada a Ré indicará quantos motoristas estão ativos na época; após isso, deverá comprovar 1/6 de regularização por mês, até o limite de 6 meses em que todos deverão estar com contratos regularizados; a multa incidirá a cada período mensal de comprovação e percentual de regularização”.

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Segundo o advogado trabalhista Renato Oliveira, é importante entender que a decisão não possui caráter definitivo, uma vez que ainda está passível de recurso pela Uber, que inclusive já manifestou-se neste sentido. “Interessante considerar que já existe um entendimento sobre a temática pelo Superior Tribunal Federal, que entende pela existência de outros tipos de contratos distintos da estrutura tradicional da relação de emprego regida pela CLT”. Quanto à multa, o advogado explica que ela também está passível de recurso. “Quanto ao ajuizamento da ação pelos trabalhadores para exigir a multa, o título executivo, neste caso a decisão judicial, só passa a ter validade para fins de recebimento após exauridas todas as possibilidades de recursos, o que ainda não é o caso”.

Para a advogada empresarial Marilza Muniz, há grandes chances da decisão em Primeiro Grau ser reformada. “O próprio STF já entendeu que não há o que se falar em vínculo empregatício entre motorista e aplicativo, pois o motorista pode decidir quando e se prestará serviço de transporte para os usuários cadastrados. Entre outros pontos, não há exigência mínima de trabalho, de faturamento ou de número de viagens nem fiscalização ou punição pela decisão do motorista. Não há uma relação de emprego”.

Uma fonte ligada a uma empresa de aplicativo disse que a decisão caiu como uma surpresa no meio, mas que deve ser facilmente derrubada. “Não sabemos se isso demonstra uma tendência do poder público a colocar a categoria como CLT para a previdência ou se é uma perseguição específica contra a Uber. Algo no setor vai mudar, mas ainda não sabemos o que”.

Segundo o coordenador nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret) do MPT, Renan Bernardi Kalil, esta decisão é de grande importância para o debate sobre o tema no Brasil, em razão da ampla gama de dados examinada no curso do processo, bem como do desvelamento da dinâmica do trabalho via plataformas digitais. “A ação demandou análise jurídica densa e, sem sombra de dúvidas, o maior cruzamento de dados da história do MPT e da Justiça do Trabalho”, destacou.

Para Carina Trindade, representante sindical e presidente do SIMTRAPLI-ES, a perspectiva é que a Uber recorra e que a multa não seja aplicada. Segundo ela “é uma decisão em primeira instância, a Uber já está escorrendo dela, cabe as outras instâncias decidirem se há ou não o vínculo. Hoje o Brasil é o segundo maior mercado da Uber, ela não vai sair do Brasil e só vai realmente pagar essa multa se for determinado em última instância”.

O que é uma ação civil pública?

Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público, uma ação civil pública tem como objetivo proteger interesses difusos ou coletivos, responsabilizando os que causam danos a esses bens tutelados. Pode ser ajuizada tanto pelo Ministério Público quanto por outras entidades jurídicas, sejam elas públicas ou privadas, com o propósito de proteger o patrimônio público e social, o meio ambiente e o consumidor, visando a reparação de danos. Na ACP, busca-se que os réus sejam condenados a cumprir (ou a se abster de) determinada ação, sob pena de multa caso não atendam à decisão judicial.

Como surgiu a ação contra a Uber?

A ação foi proposta pelo MPT em 8 de novembro de 2021 e distribuída aleatoriamente para a vara que julgou o caso em primeira instância.

Segundo o Ministério Público, eles receberam denúncias da Associação dos Motoristas Autônomos de Aplicativos (AMAA) quanto às condições de trabalho dos motoristas que dirigem pela Uber.

Em junho de 2016, o órgão realizou uma audiência sobre o assunto e recebeu uma nova denúncia sobre a empresa. Segundo os relatos no processo, a Uber se negou a divulgar alguns documentos solicitados e havia divergência no número de motoristas cadastrados, entre 500 mil e quase 774 mil.

Após as audiências, em que foram ouvidos tanto motoristas quanto representantes da Uber, o MPT entendeu que havia existência de vínculo entre o app e seus motoristas.

Por que o juiz entendeu que existe vínculo empregatício dos motoristas com a Uber?

Trecho na íntegra da decisão:

O enquadramento da relação da Ré com seus motoristas se encaixa no conceito de subordinação estrutural, em sua evolução algorítmica de forma inequívoca. E essa conclusão pode ser obtida a partir de questionamentos que remetem ao conjunto probatório citado anteriormente: A Ré organiza o trabalho por meio de regras escritas e tecnologicamente direcionadas? A Ré comanda os termos e limites da prestação de serviços aos passageiros? A Ré fiscaliza a qualidade do trabalho, o tempo, o local, as conexões e desconexões? A Ré pode decidir unilateralmente sobre aplicação de sanções, médias e máximas? Pode bloquear temporariamente o motorista? Pode excluir motoristas da plataforma e portanto do trabalho de forma definitiva?

As respostas são todas positivas como o conjunto probatório revelou. Mas, como descrito inicialmente, tais poderes não são exercidos pessoalmente, por voz ou presença física, mas sim por meio da tecnologia que comanda o aplicativo.

A tecnologia exerce as funções que o antigo chefe (líder, supervisor, gerente) fazia de forma direta e pessoalizada no passado. A plataforma o faz por meio de um aplicativo, em que as regras que nele constam são definidas pela Ré, com a diferença que ao invés de o trato ser direto e pessoal é indireto e tecnológico, mas continua a ser nos mesmos moldes de antes, o empregador determina. Como visto, altera-se o modo de fazer o que já existia, não há efetivamente algo novo ou inexistente anteriormente. A tecnologia disruptiva, nesse sentido, altera o formato da subordinação, mas não deixa de sê-la. Há uma dupla disruptividade, portanto, a da Ré com os passageiros, o que a mantém enquadrada em atividade de transporte de passageiros, e a da Ré com os motoristas, que a mantém na condição de parte subordinante da relação contratual.

Qual foi o posicionamento da Uber após a decisão?

Integra da nota da Uber sobre o caso:

A Uber esclarece que vai recorrer da decisão proferida pela 4ª Vara do Trabalho de São Paulo e não vai adotar nenhuma das medidas elencadas na sentença antes que todos os recursos cabíveis sejam esgotados.

Há evidente insegurança jurídica, visto que apenas no caso envolvendo a Uber, a decisão foi oposta ao que ocorreu em todos os julgamentos proferidos nas ações de mesmo teor abertas pelo Ministério Público do Trabalho contra plataformas, como nos casos envolvendo Ifood, 99, Loggi e Lalamove, por exemplo.

A decisão representa um entendimento isolado e contrário à jurisprudência que vem sendo estabelecida pela segunda instância do próprio Tribunal Regional de São Paulo em julgamentos realizados desde 2017, além de outros Tribunais Regionais e o Tribunal Superior do Trabalho.

A Uber tem convicção de que a sentença não considerou adequadamente o robusto conjunto de provas produzido no processo e se baseou, especialmente, em posições doutrinárias já superadas, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal.

Na sentença, o próprio magistrado menciona não haver atualmente legislação no país regulamentando o novo modelo de trabalho intermediado por plataformas. É justamente para tratar dessa lacuna legislativa que o governo federal editou o Decreto Nº 11.513, instituindo um Grupo de Trabalho “com a finalidade de elaborar proposta de regulamentação das atividades executadas por intermédio de plataformas tecnológicas”, incluindo definições sobre a natureza jurídica da atividade e critérios mínimos de ganhos financeiros.

JURISPRUDÊNCIA

Nos últimos anos, as diversas instâncias da Justiça brasileira formaram jurisprudência consistente sobre a relação entre a Uber e os parceiros, apontando a ausência dos quatro requisitos legais e concomitantes para existência de vínculo empregatício (onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação). Em todo o país, já são mais de 6.100 decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho afastando o reconhecimento da relação de emprego com a plataforma.

O TST já determinou em diversos julgamentos unânimes que não existe vínculo de emprego entre a Uber e os parceiros. Em um dos mais recentes, a 4ª Turma do TST considerou que motoristas podem “escolher, livremente, quando oferecer seus serviço, sem nenhuma exigência de trabalho mínimo”, o que deixa claro que há “práticas no modelo de negócios das plataformas online que distinguem bastante os serviços realizados por meio delas das formas de trabalho regulamentadas pela CLT”.

Também o STJ, desde 2019, vem decidindo que os motoristas “não mantêm relação hierárquica com a empresa porque seus serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos, e não recebem salário fixo, o que descaracteriza o vínculo empregatício”.

Recentemente, o STF negou a existência de vínculo e revogou duas decisões de Minas Gerais, declarando que uma delas “desrespeitou o entendimento do STF, firmado em diversos precedentes, que permite outros tipos de contratos distintos da estrutura tradicional da relação de emprego regida pela CLT”, e que a outra “destoa da jurisprudência do Supremo no sentido da permissão constitucional de formas alternativas à relação de emprego”.

Por o juiz definiu uma multa de R$1 bilhão?

Trecho na íntegra da decisão:

A Ré [Uber] afirma que repassou 76 bilhões (até outubro de 2022) àqueles que ela mesma denomina de colaboradores, restando “retido” um percentual do valor total, portanto, a conta facilmente chega a 100 bilhões de reais, tendo em vista que o próprio termo de uso da Ré indica percentuais de “retenção” e a testemunha ouvida a rogo dela confirma tais percentuais (de 20% a 25%).

A base de cálculo se dá sobre uma arrecadação total de 100 bilhões de reais. Mas ainda falta decidir o percentual, vejamos.

Considerando-se que a Ré deve reconhecer a condição de empregado de seus motoristas, bem como que neste caso se torna obrigada a pagar valor de SAT (Seguro de Acidente de Trabalho), o qual varia de 1% a 3% sobre a folha de pagamento, o valor atribuído ao dano coletivo representa a base mínima desta contribuição oficial para o sistema público que lida com o Fator Acidentário Previdenciário, e tudo a partir de seus próprios relatos de valores pagos, sem incluir outras contribuições que seriam devidas para custeio do sistema público de assistência social em sentido amplo (só de contribuição previdenciária o valor se elevaria em dezenas).

Para quem iria o valor de R$1 bilhão?

Os valores do dano moral coletivo seriam destinados para o Fundo de Amparo ao Trabalhador na proporção de 90%, sendo os demais 10% para as associações de motoristas por aplicativos que tenham registro em cartório e constituição social regular, em cotas iguais e de tantas quantas forem encontradas pelo Ministério Público do Trabalho no Brasil.

A decisão vale para todos os aplicativos?

Não, a ação do Ministério Público do Trabalho é destinada especificamente à Uber.

O que o STF já decidiu sobre casos semelhantes?

Até o momento, as decisões de pedidos de motoristas de app por vínculo empregatício foram negados por ministros do STF.

Mais recentemente, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, negou o vínculo empregatício entre um motorista de aplicativo e a Cabify.

A decisão reverteu o entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 3 Região. Moraes ainda encaminhou o caso para a justiça comum, não mais para a justiça do trabalho.

Na reclamação que a Cabify enviou ao STF pedindo a revisão da decisão do TRT-3, a empresa afirmou que o enquadramento da relação estabelecida entre o motorista de aplicativo e a plataforma deve ser aquela prevista no ordenamento jurídico como maior semelhança e que essa seria a Lei n. 11.442/2007, do transportador autônomo.

Moraes concordou com a tese, relembrando decisões anteriores do STF que julgou a constitucionalidade da Lei n. 11.442/2007, afirmando que a constituição não proíbe a terceirização de atividades-meio ou fim.

“A Lei nº 11.442/2007 (i) regulamentou a contratação de transportadores autônomos de carga por proprietários de carga e por empresas transportadoras de carga; (ii) autorizou a terceirização da atividade-fim pelas empresas transportadoras; e (iii) afastou a configuração de vínculo de emprego nessa hipótese”, disse o ministro Roberto Barroso em decisão citada por Moraes.

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Giulia Lang

Giulia Lang é líder de conteúdo do 55content e graduada em jornalismo pela Fundação Cásper Líbero.

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