Trabalhar como motorista de aplicativo no Rio de Janeiro é um desafio diário, que envolve mais do que dirigir. Além das dificuldades com os custos de operação e a falta de reajustes nas tarifas, a segurança se tornou uma das maiores preocupações de quem atua nas ruas. No meio desse cenário, alguns motoristas decidiram compartilhar suas experiências na internet, mostrando a realidade da profissão sem filtros. Um deles é Douglas Silva, motorista e criador de conteúdo, que encontrou na produção de vídeos uma forma de orientar outros colegas sobre os desafios do dia a dia.
Douglas começou sua jornada nos aplicativos buscando uma renda extra, mas acabou transformando a atividade em seu trabalho principal. O que o motivou a criar conteúdo foi a falta de representatividade de motoristas que, assim como ele, partem da Baixada Fluminense para rodar na cidade. Enquanto a maioria dos influenciadores mostrava o cotidiano de quem começa o dia em áreas mais privilegiadas, como a Zona Sul ou a Barra da Tijuca, Douglas decidiu trazer uma visão mais realista da profissão para quem sai de regiões como Belford Roxo e Nova Iguaçu.
Confira abaixo a entrevista completa:
Douglas, para começar, conte um pouco da sua trajetória. Como você decidiu se tornar motorista de aplicativo e o que te motivou a criar conteúdo para a internet?
Douglas: Eu entrei no ramo dos aplicativos inicialmente como uma forma de obter uma renda extra, assim como muitos motoristas. Trabalhei dessa maneira por cerca de dois anos até que a empresa em que eu trabalhava fechou e fui desligado. A partir daí, passei a me dedicar integralmente à profissão de motorista de aplicativo.
A ideia de produzir conteúdo surgiu porque percebi uma lacuna na internet. Eu saía diariamente da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, e não encontrava ninguém que compartilhasse a rotina de motoristas que partiam dessa região, como Belford Roxo, Nova Iguaçu ou Duque de Caxias. A maioria dos criadores de conteúdo iniciava seus trajetos na Barra da Tijuca ou na Zona Sul. Então, decidi mostrar o dia a dia de quem sai da Baixada, os desafios enfrentados, o trânsito e a realidade, que é bem diferente de quem já começa a rodar dentro da área de maior demanda.
E você atua apenas nessa região da Baixada Fluminense?
Douglas: Na verdade, eu trabalho no Rio de Janeiro como um todo, mas começo meus dias em Belford Roxo.
Desde quando você trabalha com aplicativos?
Douglas: Comprei meu carro em 2017 e comecei a rodar por volta do final de 2018. Trabalhei o ano de 2019 inteiro, mas parei durante a pandemia em 2020. Depois que a situação melhorou, retomei as atividades.
Hoje, muitos motoristas acabam se dedicando mais à criação de conteúdo do que ao próprio trabalho nas ruas. No seu caso, como você divide o tempo entre dirigir e produzir material para a internet?
Eu continuo sendo motorista de aplicativo em tempo integral e crio conteúdo durante a jornada. Ainda dependo das corridas para minha renda principal.
Você se organiza com metas diárias ou semanais? Como funciona sua estratégia de ganhos?
Douglas: Sim, tenho uma meta estabelecida. Acredito que a maioria dos motoristas trabalha dessa forma. Minha meta líquida mensal é de R$4.000,00, o que equivale a aproximadamente R$1.000,00 por semana. Para alcançar esse valor, minha meta diária é de R$300,00, já considerando os gastos com combustível. Normalmente, gasto entre R$90,00 e R$100,00 por dia em combustível para atingir essa meta.
E quanto tempo você trabalha por dia para alcançar essa meta?
Douglas: Minha jornada costuma durar em torno de 10 horas diárias. Como a meta financeira não é muito alta, consigo trabalhar um pouco menos do que alguns motoristas que buscam faturar valores mais elevados.
Quais são os maiores desafios em conciliar a vida de motorista com a de criador de conteúdo?
O maior desafio é equilibrar as duas funções e, ao mesmo tempo, mostrar a realidade nua e crua do dia a dia. É importante exibir tanto os dias bons quanto os ruins, porque quem trabalha nas ruas sabe que nem sempre tudo sai como planejado. Se eu mostrasse apenas os dias de bons ganhos, poderia passar a impressão de que a profissão é sempre vantajosa, o que não é verdade.
A conexão com o público vem justamente dessa transparência. Há momentos difíceis, problemas com passageiros, questões de segurança, principalmente no Rio de Janeiro, e tudo isso faz parte da rotina. Meu objetivo é compartilhar essa realidade sem filtros.
No início da sua jornada como motorista, era mais fácil faturar do que hoje?
Douglas: Sem dúvidas. Já são mais de 10 anos sem reajuste na tarifa dos aplicativos, enquanto o custo do combustível e os impostos, como o IPVA, só aumentam. A cada ano, a situação se torna mais desafiadora para quem depende do aplicativo para viver. Antes, eu conseguia faturar R$300,00 em apenas cinco ou seis horas de trabalho. Hoje, para alcançar esse mesmo valor, preciso rodar pelo menos 10 horas.
A maior dificuldade atualmente é a necessidade de filtrar as corridas com muito mais cuidado. Se antes o motorista aceitava quase todas as viagens sem grandes preocupações, hoje é necessário avaliar cada corrida rapidamente para evitar prejuízos.
Você mencionou a importância de escolher bem as corridas. Como é esse processo de decisão em poucos segundos?
Douglas: Os aplicativos mostram as corridas por poucos segundos, então o motorista precisa analisar diversos fatores rapidamente: se o destino está em uma área de risco, se o tempo estimado realmente condiz com a distância e se a corrida vale a pena financeiramente. Muitas vezes, o trajeto indicado pelo aplicativo não corresponde à realidade, pois ele calcula o menor caminho possível, que pode passar por dentro de comunidades perigosas.
Se o motorista aceitar a corrida e depois perceber que não é viável, o cancelamento pode gerar penalidades na plataforma. Por isso, essa análise precisa ser ágil e eficiente, o que acaba sendo desgastante ao longo do dia.
Resumindo, hoje o trabalho exige muito mais estratégia e atenção do que antes, o que torna a rotina ainda mais desafiadora para quem vive dos aplicativos.
Douglas, falando sobre tarifas dinâmicas, muito se comenta que elas diminuíram bastante, assim como as promoções. Qual a sua visão sobre isso?
Douglas: Hoje, praticamente não existem mais tarifas dinâmicas. Elas aparecem apenas em momentos muito específicos, como quando há um congestionamento intenso ou durante chuvas fortes no final do dia. No entanto, nessas situações, mesmo que a dinâmica suba, o trânsito impede que consigamos rodar normalmente. No mês de dezembro, por exemplo, houve um aumento na demanda, mas, no geral, a dinâmica deixou de ser uma realidade para os motoristas.
E para quem está começando a trabalhar com aplicativos, você tem alguma dica? Ainda vale a pena entrar nesse mercado ou já está saturado?
Douglas: Ainda vale a pena, mas é essencial ter consciência de que o sucesso ou o fracasso depende, principalmente, do controle de custos. O motorista precisa minimizar os gastos o máximo possível, escolhendo um carro adequado à categoria em que pretende atuar, mas que não tenha um custo de manutenção alto nem um consumo excessivo de combustível.
Para quem busca alternativas de trabalho e não tem uma outra profissão ou opção de emprego formal, o aplicativo ainda pode ser uma boa solução. Muitos empregos CLT oferecem salários de cerca de R$1.400,00, com apenas uma folga por semana e um domingo de descanso por mês. Para quem está nesse contexto, trabalhar com aplicativos pode ser vantajoso, desde que mantenha o custo operacional e o custo de vida sob controle.
Você tem algum aplicativo preferido? Prefere trabalhar com a Uber, 99 ou inDrive? E em qual categoria atua atualmente?
Douglas: Atualmente, trabalho com a categoria UberX. Até um ano atrás, eu rodava na categoria Comfort, mas a Uber alterou a lista de veículos aceitos e meu carro, um Sandero, acabou sendo removido da categoria. Muitos colegas compraram carros especificamente para rodar no Comfort, acreditando que permaneceriam nessa modalidade. No entanto, no final do ano, a Uber mudou as regras e excluiu esses veículos da lista, o que prejudicou muitos motoristas.
No meu caso, como eu já possuía o carro, a mudança não teve um grande impacto, mas para aqueles que investiram pensando em rodar no Comfort, a decisão da Uber gerou bastante prejuízo. Hoje, sigo trabalhando apenas com a categoria X dentro das minhas possibilidades.
Quais são os maiores desafios enfrentados pelos motoristas de aplicativo?
Douglas: No Rio de Janeiro, o maior desafio, sem dúvida, é a segurança. Antes de qualquer questão financeira, nossa maior preocupação é conseguir voltar para casa em segurança. O risco de sofrer algum tipo de violência, seja um assalto ou outro problema envolvendo passageiros, é muito alto, e nem o Estado nem as plataformas oferecem respaldo suficiente para os motoristas.
O segundo grande desafio é garantir um lucro real. Muitos confundem faturamento com lucro, mas são coisas diferentes. Para que o trabalho valha a pena, o motorista precisa selecionar bem as corridas, evitando trajetos que não compensam financeiramente e controlando seus custos. Isso faz com que muitos precisem passar mais tempo nas ruas para realmente alcançar um lucro no final do dia.
Portanto, os principais desafios hoje são: primeiro, garantir a própria segurança; e segundo, conseguir um retorno financeiro que justifique o tempo investido no trabalho.
Douglas, para finalizar nossa conversa, quais foram as maiores lições que você aprendeu tanto como motorista de aplicativo quanto como influenciador?
Boa pergunta. Como motorista de aplicativo, aprendi que podemos aumentar nossos ganhos se estivermos dispostos a trabalhar mais. Essa experiência me fez sair da mentalidade de CLT, onde há um salário fixo todo mês, para uma visão mais empreendedora. Embora não seja fácil, é possível triplicar o valor de um salário mínimo se houver planejamento e organização. O trabalho nos aplicativos trouxe novas possibilidades para quem antes tinha opções muito limitadas de renda.
Já como influenciador, percebi que temos a capacidade de impactar positivamente outras pessoas. Meu público é formado por motoristas de aplicativo, e tento orientá-los a tomar decisões mais seguras, como evitar corridas que não valem a pena e, principalmente, não arriscar suas vidas. Sempre digo: nenhuma corrida vale entrar em uma área de risco. Pergunto aos meus seguidores: quanto estão te pagando para colocar sua vida em perigo? A segurança sempre deve vir antes da meta financeira e do lucro. Esse é o maior aprendizado que busco transmitir.
Muito interessante, Douglas. Antes de encerrar, você gostaria de acrescentar algo?
Sim, acredito que um dos nossos maiores desafios hoje é estabelecer um diálogo com as plataformas. Temos muitas reclamações, mas a principal delas é a falta de reajuste nas tarifas, que estão congeladas há mais de 10 anos. Enquanto isso, tudo ao nosso redor aumenta de preço – combustível, impostos, manutenção dos veículos. Um reajuste mínimo baseado no IPCA já faria muita diferença, mas não vemos essa preocupação por parte das plataformas. Elas buscam maximizar o próprio lucro sem repassar uma parte justa aos motoristas.
Outro grande problema é a qualidade das corridas. Muitos motoristas passam horas escolhendo corridas porque a maioria das opções oferecidas não compensa. O passageiro paga barato, o aplicativo lucra, e nós praticamente não ganhamos nada. Se as corridas fossem mais justas, poderíamos aceitar mais rapidamente e atingir a meta mais cedo, reduzindo nossa jornada diária. Ninguém quer passar 12, 14 horas na rua apenas esperando corridas viáveis.
Além disso, os aplicativos precisam melhorar o mapeamento das áreas de risco, especialmente no Rio de Janeiro. Há muitas regiões perigosas e os motoristas ficam extremamente vulneráveis. Recebo relatos diários de colegas que passaram por situações violentas, e ainda assim as plataformas não tomam medidas eficazes para proteger quem trabalha nelas. Se houvesse mais preocupação com nossa segurança, todos sairiam ganhando – motoristas, passageiros e até as próprias empresas.