Com uma trajetória que começou em 2019, quando ainda atuava como camelô nas ruas do centro de Niterói (RJ), Amsterdam Sousa, conhecido entre os colegas como Mister, encontrou nos aplicativos de entrega uma alternativa para driblar as dificuldades financeiras e construir um novo caminho profissional. Depois de estrear nas plataformas com uma bicicleta e o apoio da família, ele passou para a moto, trabalhou em pizzaria e, hoje, além de atuar como entregador em tempo integral, dedica parte significativa da sua rotina à organização política da categoria.
Fundador do movimento “A Voz dos Entregadores” e presença ativa em grupos on-line que reúnem centenas de motociclistas e ciclistas, Mister compartilha experiências da rotina nas ruas, orienta colegas, cria conteúdo informativo nas redes sociais e integra movimentos nacionais em defesa de melhores condições de trabalho. Nesta entrevista ao Clube Machine, ele fala sobre os desafios da profissão, a importância do engajamento coletivo, os bastidores da criação do PL 2.479/2025 e as estratégias que vêm fortalecendo a luta por remuneração justa e mais dignidade para quem vive das entregas. Confira a entrevista completa:
Como que você começou com as entregas? O que que você fazia antes?
Eu comecei em 2019. Sempre trabalhei de forma autônoma, para mim mesmo. Na época, eu era camelô no centro de Niterói, vendia algumas coisas ali, mas chegou um momento em que não dava mais para pagar as contas. Aí surgiu a oportunidade de trabalhar com entrega. O Uber Eats e o iFood faziam muita propaganda: “Seja dono do seu próprio negócio”, “ganhos altos”. Pensei: “Vamos tentar”.
Comecei com bicicleta, de segunda a quinta-feira fazia entrega em São Gonçalo e sexta a domingo ia para Niterói, onde a demanda é melhor e menos desgastante. Mas, na prática, era bem diferente do prometido. A flexibilidade, os altos ganhos e o “seja seu patrão” não se confirmavam. Em 2020, mudei da bike para a moto e passei a intercalar entre um trabalho fixo numa pizzaria e os aplicativos. Hoje, os aplicativos são minha segunda fonte de renda, mas comecei com entregas em 2019.
Então você hoje tem um horário fixo que trabalha para algum restaurante e no restante do tempo liga os aplicativos?
Sim. Agora, de um a dois meses para cá, voltei a trabalhar de forma integral nos aplicativos, pois saí do lugar onde estava há dois anos. Estou só com os apps até conseguir outro trampo, como farmácia, laboratório ou restaurante.
Você começou com bicicleta. Você já tinha ou precisou comprar ou alugar uma? E a moto, já tinha também?
Tinha uma bicicletazinha. Tenho ela até hoje. Já a moto, não. Nada veio da entrega. Minha família me ajudou bastante. Quando vi que de bike não dava mais, pedi dinheiro emprestado para comprar uma moto de leilão. Com ela, rodei na pizzaria e, com a pandemia, surgiu o Zé Delivery. Trabalhei dois anos no Zé. Tudo que conquistei foi graças ao apoio familiar, porque os apps hoje só servem para sobreviver.
Então agora você está só com a renda do aplicativo?
Sim. Hoje dependo só dos aplicativos para pagar as contas.
E como é sua rotina? Você tem horário fixo para sair e voltar ou vai até bater a meta?
É por meta, mas quase sempre ultrapasso. Prefiro trabalhar à noite: menos trânsito, entregas mais fáceis. Durante o dia dou atenção à família e resolvo coisas da luta. Quando começo à noite, vou até 6h ou até 10h, dependendo do corpo. Fico em média 12 horas na rua, intercalando entregas com Moto Uber e 99 Moto.
Você costuma trabalhar final de semana, feriado, ou tira folga?
Quando entramos nessa profissão, já sabemos que não tem dia certo de folga. Trabalhamos conforme o corpo aguenta e as contas chegam. Final de semana tem alta demanda, então folgar significa ter que compensar depois. Ser “gerente de si mesmo” é complicado, pois os apps controlam nossos ganhos e corridas.
Qual é sua meta diária? Tem um valor fixo que busca atingir?
Minha meta diária é cerca de R$250. Dá para tirar o do combustível, uma parte para manutenção e o restante para pagar contas.
E como você abastece? Todo dia ou enche o tanque de uma vez?
Tento encher o tanque, mas geralmente coloco R$30, depois mais R$20, conforme a demanda. É gasto diário.
Quanto você gasta por semana, mais ou menos, com combustível?
Minha moto é uma 150 Start. Faz de 25 a 30km por litro. Se coloco R$30 por seis dias na semana, gasto entre R$118 e R$180.
E com manutenção, você tira um valor fixo por dia?
Já está incluso na meta. Se gasto mais em gasolina num dia, separo menos. Exemplo: ao invés de guardar R$200, separo R$180. Vai ajustando.
E quando acontece algo imprevisto, tipo furar o pneu?
Acontece direto. Semana passada, comecei 13h e fui até 18h, mas o pneu furou. Troquei a câmara de ar, gastei R$70. Fui para casa, e quando voltei, o pneu estava vazio de novo. Gastei de novo. Aquele dia só paguei prejuízo.
Você costuma comer em casa ou gasta na rua?
Trabalho mais à noite, então já saio de casa alimentado. Se for sair mais cedo, tipo meio-dia, como em casa ou faço um lanche fácil na rua.
Quantos quilômetros você roda por dia?
Minha média é 1 real por quilômetro. Rodo cerca de 250km por dia.
É longe da sua casa o ponto de maior demanda?
Não, o lugar de maior demanda é em Niterói, uns 9km da minha casa. Fico geralmente perto do Plaza Shopping. Já na Uber Moto e 99, ligo daqui mesmo e vou indo.
A região em que você roda é perigosa ou, por já conhecer, se sente mais seguro?
Por eu conhecer, me sinto mais seguro. Aqui o crime é “unificado”, diferente do Rio, que é dividido por facções. No Rio, você pode estar num local de uma facção e andar dois metros e cair em outra área, é complicado. Tenho grupos com o pessoal que roda lá, e eles já sabem onde podem entrar. Eu prefiro ficar por aqui, onde me sinto mais seguro.
Você já foi assaltado fazendo entrega?
Graças a Deus, não. Mas quando eu trabalhava no Zé Delivery, fui vítima do que a gente apelida aqui como “Tróia”: um cara pediu troco alto, levou a encomenda, o troco e até meu celular. Não vi arma, mas ele fez gesto de que estava armado. Pegou minha chave e jogou num terreno baldio. Fiquei sem nada.
Você já sofreu algum acidente fazendo entrega?
Sim, mas não em aplicativo, foi na pizzaria onde eu era registrado, carteira assinada, tinha todos os direitos. Um motorista alcoolizado fez uma bandalha, parou no meio do caminho. Eu voltava de uma entrega e não deu tempo de evitar. Fiquei 25 dias internado e levei cerca de 10 meses para me recuperar. Se eu estivesse no aplicativo, teria sido um perrengue enorme.
Como você se envolveu com os movimentos de luta dos entregadores?
Comecei entre 2022 e 2023, quando soube de uma manifestação em Niterói. Lá conheci o presidente de uma associação e me chamou para ser diretor. Depois ajudei a fundar outra associação, mas cada um foi para um lado e eu criei algo meu: em janeiro de 2024, nasceu a Voz dos Entregadores, com objetivo de levar a voz da categoria para ser ouvida e atendida.
O que vocês fazem nessa comunidade? Como se comunicam?
Temos um grupo de WhatsApp com cerca de 500 entregadores, moto e bike. Também usamos o Instagram. No grupo principal e nos auxiliares, trocamos ideias, contamos como foi o dia, pedimos sugestões e ajuda durante as corridas. Eu converso muito com o pessoal enquanto estou na rua.
Quando começou a criar conteúdo para a internet?
Nunca fui fã de redes sociais, mas com o tempo vi que precisava mostrar o que estava acontecendo. No começo era só página informativa, compartilhando acidentes, notícias. Depois, o perfil cresceu e virou um movimento. Hoje, uso também um lado mais formativo: abro caixas de perguntas e respondo de forma informativa.
Quais são as principais dúvidas que você recebe?
Muita gente pergunta a diferença entre movimento social, associação e sindicato. Também querem saber os melhores horários para rodar, qual aplicativo é melhor. Esses temas geram bastante conteúdo.
Como concilia entrega, luta, conteúdo e vida pessoal?
É muito difícil. Às vezes tento me afastar um ou dois dias para respirar, mas não consigo. A luta me chama. Às vezes ela toma tanto meu tempo que deixo de trabalhar. As contas chegam e fico maluco. Tudo o que faço é voluntário, não recebo para isso. Faço porque quero fazer acontecer.
O que vocês esperam que melhore na profissão?
Remuneração justa. A gente saiu da CLT em busca de ser dono do nosso negócio, mas não é isso que acontece. Os custos e riscos são nossos, e os apps pagam o que querem. Com remuneração adequada, teríamos mais qualidade de vida, tempo com a família e para desenvolver outra profissão.
Quais mudanças vocês reivindicam nos aplicativos?
Por exemplo, as entregas agrupadas. O iFood paga R$3 a mais por entrega extra no mesmo trajeto, ao invés de pagar o valor integral. Isso tira pedidos de outros entregadores. Também tem o sistema de “score”: quanto menor o score, menos corridas você recebe. Isso amarra o trabalhador à plataforma. É ruim para o entregador e para o cliente, que recebe o pedido atrasado.
O que você mais gosta e o que menos gosta no seu trabalho?
O que mais gosto é a liberdade de estar na rua. Não tenho vocação para trabalhar em escritório, gosto de estar em lugares diferentes, de lidar com pessoas.
O que menos gosto é a forma como os aplicativos nos tratam. Nos veem como números, não como pessoas. Não há transparência. Podem nos banir a qualquer momento. Há muita insegurança, incertezas e falta de valorização.
O que você gostaria que as pessoas entendessem sobre sua profissão?
Somos trabalhadores por demanda, recebemos por produção. Tempo é dinheiro. Quando um cliente demora a descer ou quer que a gente suba, atrasa nossa rotina. O mesmo vale para restaurantes que demoram para liberar pedidos. Um “obrigado”, um sorriso, já melhora muito o nosso dia. Já temos mil problemas; gentileza faz diferença.
Você costuma receber gorjetas?
Sim, minhas avaliações são sempre altas. A gorjeta, mesmo que seja R$1,50, ajuda bastante. A plataforma cobra um valor do cliente, mas não repassa esse valor todo para nós. Então, a caixinha faz diferença.
E no mototáxi, os ganhos são parecidos com a entrega?
Sim, mas menos estressante. No mototáxi não tem espera para coletar pedido, não precisa ficar em ponto fixo. Toca corrida onde você estiver. Mas ambos exploram nossa força de trabalho. Só ganhamos mais quando está dinâmico, chovendo ou com poucos na rua. A diferença é que na Uber e 99 dá para receber no dia; no iFood, só na semana.
Você costuma rodar em datas comemorativas e feriados?
Sempre. São os melhores dias para trabalhar. Em tempo frio, o pessoal pede mais delivery. Em dias quentes, o mototáxi bomba mais. Feriado, chuva, tudo isso ajuda a aumentar os ganhos.
Alguma entrega ou corrida marcante, boa ou ruim?
Nada muito marcante. Já levei passageiro bêbado que dormiu na garupa. Mas nunca fui destratado. Sempre mantenho profissionalismo, trato bem os clientes e tenho boas avaliações. Procuro ser melhor do que ontem.
O que você diria para quem está começando? Algo que gostaria de ter escutado lá no início?
Use os aplicativos como renda extra, nunca como principal. Quando dependemos só deles, eles passam a ter total controle sobre nosso trabalho. Quem usa como segunda renda pode ser mais seletivo. Os aplicativos vieram para ajudar, mas viraram nossos carrascos.
Você está procurando outra fonte de renda ou pretende voltar a trabalho fixo?
Pretendo voltar como motoboy registrado, com carteira assinada. Já apareceram oportunidades, como em farmácia, mas tomaria meu tempo e prejudicaria a luta. Então sigo nos aplicativos até surgir algo melhor.
Dicas práticas para quem está começando?
- Procure os pontos de coleta mais movimentados, como shoppings.
- Envolva-se em grupos da região, troque ideias, aprenda com os colegas.
- Leve carregador portátil, capa de chuva, capa à prova d’água para o celular.
- Beba bastante água e não segure vontade de ir ao banheiro.
- Evite se alimentar só de salgadinhos e refrigerantes, isso faz mal a longo prazo.
Você quer divulgar algo, algum canal ou rede?
Sim, tenho o perfil pessoal Mister MT, e o da luta: Voz dos Entregadores. Lá, falamos sobre tudo da categoria.
Fale um pouco sobre o PL que vocês estão propondo.
Graças ao breque nacional, conseguimos visibilidade. Tivemos audiência pública no Congresso. O PL 2.479 de 2025 é um projeto criado por entregadores para entregadores. Nossas principais pautas:
- Taxa mínima de R$10 por entrega;
- Fim das entregas agrupadas;
- R$10 para até 3km, especialmente para bike.
A PL tem mais de 260 assinaturas de deputados. Mas os aplicativos fizeram lobby e criaram uma comissão para barrar. Estamos pressionando o Hugo Motta, presidente da Câmara, para pautar o PL. Aprovando essa PL, os aplicativos terão que nos remunerar de forma justa.