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“iFood diz que paga R$3 a mais numa entrega, mas empresa está pagando menos que a metade desse valor. Não somos autônomos, somos subordinados”, diz entregador

Homem usando colete refletivo amarelo em ambiente interno, olhando para cima com expressão séria.
Amsterdan Souza, conhecido como Mister, em evento discutindo condições de trabalho por aplicativos.

Criador do movimento Voz dos Entregadores conta sobre sua trajetória e perspectiva e desabafa: “O iFood fez um reajuste, sim. Mas foi há dois anos e isso é falso.”

Amsterdan Souza, conhecido como Mister, é entregador desde 2019 e criador do coletivo Voz dos Entregadores

A iniciativa nasceu da necessidade de dar voz a uma categoria que, segundo ele, enfrenta a precarização do trabalho por aplicativos e a falta de valorização. 

Em entrevista exclusiva à equipe do 55content, Mister compartilhou sua trajetória, os desafios da profissão e a luta por melhorias para os entregadores.

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Eu queria que você falasse um pouco sobre você, como você entrou nesse mercado das entregas e sobre o coletivo: como ele surgiu? 

Primeiramente, eu sou o Amsterdan, conhecido como Mister. Sou entregador desde 2019 e, há três anos, venho lutando em defesa da minha categoria. Como a maioria dos entregadores, fui atraído por uma promessa de autonomia, flexibilidade e altos ganhos. Mas, na realidade, é totalmente diferente. Por trás desses “altos ganhos”, há uma precarização da nossa categoria e um sucateamento geral. Os aplicativos não têm transparência nenhuma e não demonstram responsabilidade com nós, entregadores.

Diante desse cenário, decidi lutar por melhorias. Estou até hoje nessa luta, tentando fazer alguma coisa, levando a voz dos entregadores e fazendo com que ela seja ouvida.

No decorrer dessa caminhada, entrei para um movimento local. Foi nesse movimento que conheci três amigos, e juntos decidimos sair para criar o nosso próprio movimento. Isso foi há cerca de um ano e meio. Hoje, estou em um projeto individual chamado “Voz dos Entregadores”, onde procuro levar a voz da minha categoria, buscar por melhorias, e assim seguimos.

Quais são as principais demandas, os principais motivos que levam você a ficar nessa luta? O que você busca levar para as pessoas? 

Eu procuro conversar com eles, trocar ideias, despertar. Quando a gente fala: “Gente, nós somos subordinados, sim, aos aplicativos. Nós não somos autônomos, né?”. O aplicativo vende essa autonomia, mas isso é totalmente errado. A gente não coloca preço no nosso serviço. Nós somos subordinados a várias regras que o aplicativo nos impõe, e, se a gente não seguir essas regras, somos penalizados.

Isso tem que mudar. Nós somos a base, nós somos a engrenagem principal. Sem a gente, o aplicativo não funciona. Não tem aplicativo. Principalmente o iFood, que detém mais de 80% do mercado de delivery no nosso país. Um faturamento bilionário todo ano. Só dois meses atrás, mais ou menos, eles entregaram mais de 100 milhões de pedidos em um mês. Isso é um absurdo. Para eles, é ótimo; para nós, não.

Desde que eu conheço a vida de entregador, eu não conheço nenhum entregador que realmente tenha conseguido se levantar. A gente só sobrevive, mais nada. Sobrevivemos. Somos subordinados. Temos um valor mínimo por entrega, e o aplicativo só aumenta a dependência da gente dentro do sistema. Porque agora tem score, agora tem agendamento, agora tem “saúde da conta”. Isso faz com que você dependa ainda mais do aplicativo.

Infelizmente, é difícil se desvencilhar disso porque você não encontra outra oportunidade. Aí eu tento criar essa consciência de classe neles, para que possamos unir a nossa categoria e, de fato, lutar por algo melhor: dignidade, valorização, respeito.

Depois da pandemia para cá, nossa categoria está sendo vista com outros olhos. Infelizmente, nós éramos heróis; hoje em dia, somos vistos de forma negativa. Eu tô tentando fazer com que essa imagem mude de alguma forma.

Em qual cidade você atua mais hoje em dia?

Eu estou atuando mais em Niterói e São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Só que aqui onde eu moro, o iFood é a maior demanda em Niterói. Então, muitos entregadores de São Gonçalo acabam indo para Niterói. Ali é mais fácil de eu encontrar a galera, trocar ideia e, até mesmo, os grupos da nossa região, aqui no nosso município.

Quais são as ações que você mais faz para chamar atenção, tanto dos entregadores quanto das plataformas? Como você mobiliza essas pessoas?

Primeiramente, nos grupos e nas redes sociais. E, quando estou em uma entrega ou outra, a gente vai trocando ideia, conversando. Às vezes, a gente encontra pessoas também com o mesmo interesse que a gente e, assim, vamos compartilhando ideias. Fazemos com que essas pessoas acabem se encontrando, se reunindo em um local. No caso, os grupos são uma forma mais fácil de falar com os entregadores. Ali, a gente conversa sobre dúvidas, debate ideias, compartilha nosso dia a dia e, assim, vai indo.

Atualmente, você tem contato com outras organizações, sindicatos ou associações? Ou você tenta trilhar esse caminho sozinho?

A gente não consegue nada sozinho, dificilmente consegue. Eu, graças a Deus, nesses três anos de luta, encontrei pessoas boas, outras lideranças, que, na maioria das vezes, me inspiram. Eu vejo neles a inspiração para não desistir da luta, porque vejo eles correndo atrás, fazendo acontecer, se organizando.

Eu busco levar esse conhecimento deles para o meu local. Eu tenho contato com pessoas de Manaus, Bahia, Pernambuco e assim vai, de vários estados.

Você sente alguma resistência dos entregadores para chegar até eles? 

Tem essa resistência, mas os que dependem 100% do aplicativo se mostram solícitos à ideia, porque entendem isso. Estão diariamente ali, sob o sol, sob a chuva, experimentando as adversidades da nossa profissão. Assim, eles acabam até aderindo à ideia. Como agora, na semana passada, tivemos a paralisação nacional dos entregadores. Eu consegui mobilizar uma galera em Niterói, e essa galera comprou a ideia e resolveu participar.

Outros, que não dependem 100% da plataforma do iFood, ficaram um pouco relutantes sobre parar ou não. Mas, através do diálogo, conseguimos também convencer esses entregadores. Coletamos naquele local que tínhamos reservado para paralisar, para, de alguma forma, chamar a atenção do iFood. E conseguimos, com o trabalho de todo mundo.

Eu não tenho um canal aberto ainda com o iFood. Eu, quando eu falo assim, eu falo com as outras lideranças que têm esse canal. A gente tem um grupo de lideranças nacionais. E, nesse grupo, quando alguém sabe alguma informação, tem alguma informação valiosa, passa pra gente. A gente procura transmitir para o resto do pessoal.

E assim, muitos deles falaram com o iFood. Eles levam as demandas, mas o iFood não quer reconhecer essa paralisação como válida. Porque, segundo o iFood, teve um reajuste há dois anos atrás. Mas esse reajuste é totalmente falso. 

Eles agregaram R$3 a mais numa entrega, ao qual a gente teria que receber completa. Ele só está pagando menos da metade dessa entrega. E, segundo eles, esse foi o reajuste que eles fizeram. Mas isso é totalmente errado.

Agora, a gente vai vir com uma outra pauta pra gente poder lutar contra isso. Agora é com a desculpa que vão esperar a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre vínculo empregatício, sobre a regulamentação. Estão aguardando isso aí para poder se pronunciar, se funcionar. 

Só que a gente já vai vindo com outra, um ponto, a linha de frente. Para pressionar ainda mais o iFood. Pois tem que mudar isso. Já tem anos que eles não reajustam. De lá para cá, só veio mais responsabilidade, dever para a gente poder cumprir, e até agora nada. O iFood, oficialmente, se exime de tudo e qualquer responsabilidade.

Qual é a sua visão sobre essa questão de se tem que haver uma regulamentação e como ela deve ser feita?

Eu sou favorável a uma regulamentação, porque eu sou motoboy CLT e também trabalho por aplicativo. Eu sei a seguridade que a CLT me proporciona e que os aplicativos não proporcionam. Eu tenho esses dois lados da moeda, por trabalhar tanto como CLT quanto por aplicativo.

Muitos ainda pensam que, com a regulamentação, os entregadores terão que cumprir horário, mas não é isso. A regulamentação vai estipular um horário mínimo para estarmos logados na plataforma. Em compensação, os aplicativos terão a responsabilidade de recolher nosso INSS. Caso soframos um acidente, terão a obrigação de oferecer algum suporte, assumindo alguma responsabilidade sobre nós.

Além disso, há outros fatores que ainda estão sendo debatidos. Hoje, a Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos está nos representando no governo, dentro da mesa tripartite, onde estão presentes representantes do governo, das plataformas e da própria Aliança, lutando para que a regulamentação seja favorável para nós.

Eu sou totalmente a favor de uma regulamentação que beneficie os entregadores. Se o governo quiser regulamentar apenas para recolher impostos, eu não acho tão justo. Precisa ser algo que realmente nos favoreça. A regulamentação não pode tirar a falsa liberdade que temos.

Por exemplo, eu sei os horários de alta demanda, sei quando preciso estar logado. Trabalho um dia para bater minha meta, mas, se amanhã não conseguir, preciso compensar nos dias seguintes. É assim que funciona. Tenho que estar logado no aplicativo, senão não consigo pagar minhas contas. Muitas pessoas não entendem essa dinâmica. Acham que com a regulamentação vamos perder essa flexibilidade, mas isso é uma falsa percepção.

Como você vê o futuro do trabalho por aplicativo? 

Nós somos a primeira profissão impactada pela era digital nos aplicativos. A profissão de motoboy existe desde 1980, em São Paulo, para agilizar as entregas diante da demanda. De lá para cá, fomos nos atualizando. Antes, a gente negociava diretamente com o patrão. Depois, veio o terceirizado, o quarteirizado e assim por diante.

Os aplicativos chegaram para pulverizar nossa categoria e individualizar ainda mais. Hoje, estamos sofrendo as consequências. Estamos na linha de frente nessa luta. Estamos semeando. Não sabemos se amanhã vamos conseguir colher, mas, com certeza, se pararmos hoje, faremos a diferença para que outras gerações que venham a trabalhar com aplicativos tenham total consciência do que enfrentamos.

Hoje, os entregadores incluem diversas outras profissões. Tem advogado, promotor, doméstico e várias outras pessoas que, de alguma forma, acabam trabalhando em plataformas. Assim, estamos chamando atenção para isso.

Os aplicativos vieram com a proposta de dar mais liberdade para nós, mas, em contrapartida, estão tirando nossos direitos. Estão tirando coisas fundamentais. Por isso, precisamos lutar por algo melhor, lutar contra o que está totalmente errado. Precisamos fazer a diferença. Estamos tentando chamar atenção de alguma forma, e acho que estamos conseguindo.

O futuro vai ser das plataformas digitais. Hoje, estamos na linha de frente, lutando para que isso seja favorável para nós. Estamos tentando fazer diferente e construir um futuro melhor.

Tem algo que você gostaria de falar para os entregadores que ainda não conhecem o seu trabalho?

Eu só faço uma pergunta para ele: “Você se acha realmente autônomo?” 

É só essa pergunta que eu faço para a maioria. Isso já planta aquela semente. A pessoa pensa: “Pô, será que sou realmente autônomo?”

Existe essa diferença, e o que é realmente ser autônomo? Trabalhar sobre o aplicativo não é ter total autonomia. Eu não coloco preço no meu serviço. Eu não escolho onde vou trabalhar. Eu não defino um horário certo para trabalhar. Então, existe uma diferença entre autonomia e trabalhar sob demanda. 

É um trabalho subordinado sob demanda, e é isso que está acontecendo com a gente.

Essa é a pergunta que eu sempre faço às pessoas, e elas acabam entendendo. “Pô, eu não sou autônomo.” Dois anos atrás, no Dia do Trabalho, eu até gravei um vídeo no meu perfil pessoal, que é o Mister MT. Tenho um perfil do Voz dos Entregadores, mas foi no Mister MT que gravei esse vídeo no dia 1º de maio, Dia do Trabalhador. Eu estava trabalhando no aplicativo.

Aí, aquilo me despertou. Eu entendi realmente a minha realidade. Era um feriado, um momento para estar com a família ou até descansar, mas eu estava ali trabalhando. Isso me deu mais combustível para continuar na luta.

Eu acredito que estou conseguindo levar a voz da minha categoria e fazer com que ela seja ouvida. Já participei de manifestações. Uma delas foi intermunicipal. Começamos em São Gonçalo e terminamos em Niterói. Conseguimos chamar a atenção do poder público de São Gonçalo, e foi aprovado um projeto de lei sobre pontos de apoio para entregadores. Agora, só falta o prefeito sancionar. No ano que vem, vamos fazer pressão para que ele assine.

Queremos levar isso para todos os estados, porque a luta não para. Eu acredito que sou uma semente para as próximas gerações de entregadores. Essas conquistas, como pontos de apoio espalhados pela cidade, vão trazer qualidade de vida.

Hoje, temos uma lei que proíbe clientes de exigir que subamos até o apartamento. Isso é fruto das pessoas que vieram na vanguarda, que lutaram para que isso acontecesse. Temos ciclovias, faixas azuis e, em alguns lugares, escritórios físicos das plataformas para atender problemas com nossas contas. Isso tudo é resultado de lutas.

Hoje, temos um suporte mais humanizado graças a essas batalhas. São pautas que enfrentamos todo ano, e acreditamos que, como dizem, “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Estamos batendo na pedra, e ela vai ceder.

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Anna Julia Paixão

Anna Julia Paixão é estagiária em jornalismo do 55content e graduanda na Escola Superior de Propaganda e Marketing.

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