A regulamentação do trabalho em aplicativos, promessa de campanha do atual presidente da República, deve ser feita no primeiro semestre deste ano.
Desde que chegou ao Brasil em maio de 2014, a Uber e outros aplicativos de transporte têm provocado o debate sobre algumas legislações no país, principalmente no campo do transporte e do trabalho.
Com a Lei 13.640, o Brasil ganhou uma regulamentação para o setor. Em resumo, a lei passou para os municípios e para o Distrito Federal a responsabilidade de realizar suas próprias regulamentações, efetivar as cobranças dos tributos municipais pela prestação do serviço, exigir a contratação de seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP) e do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) e a inscrição do motorista como contribuinte individual do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Para os motoristas, ficaram definidas quatro obrigações:
- Possuir Carteira Nacional de Habilitação na categoria B ou superior que contenha a informação de que exerce atividade remunerada;
- Conduzir veículo que atenda aos requisitos de idade máxima e às características exigidas pela autoridade de trânsito e pelo poder público municipal e do Distrito Federal;
- Emitir e manter o Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV);
- Apresentar certidão negativa de antecedentes criminais.
Indefinições e disputas judiciais
Apesar de regulamentar o transporte por aplicativo, alguns pontos ainda ficaram sem resposta. Até onde as prefeituras podem ir na hora da regulamentação? Quais critérios as plataformas podem ter para bloquear ou banir um motorista? Até onde elas podem taxar o parceiro? E talvez o motivo das principais polêmicas: qual o real vínculo entre motoristas e plataformas?
Desde então, o judiciário tem recebido uma enxurrada de processos. Motoristas pedindo vínculo empregatício com as plataformas. Plataformas pedindo inconstitucionalidade de regulamentações municipais. Motoristas pedindo desbloqueio de contas.
Em publicação no site oficial, a assessoria do Tribunal Superior do Trabalho lembrou que a questão do vínculo de emprego entre motoristas e plataformas de aplicativos ainda é objeto de divergência entre as Turmas do Tribunal Superior do Trabalho. Dois processos com decisões divergentes começaram a ser examinados pela Subseção I Especializada em Dissídios Individuais (SDI-1), órgão responsável pela uniformização da jurisprudência das Turmas, e o julgamento foi interrompido por pedido de vista.
A Uber argumenta que diversas instâncias da Justiça brasileira formaram uma jurisprudência consistente sobre a relação entre a empresa e os parceiros, apontando a ausência dos requisitos legais para existência de vínculo empregatício (onerosidade, habitualidade, pessoalidade e subordinação). Segundo a empresa, em todo o país, já são mais de 3.200 decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho reconhecendo que não há relação de emprego com a plataforma.
Assim, o debate sobre uma nova regulamentação foi ficando cada vez mais forte e também foi tema durante a eleição presidencial de 2022. Na época, o presidente Lula, então candidato, defendeu alguns pontos como jornada de trabalho, descanso semanal remunerado e inserção do motorista no INSS. “O cara se bater o carro e quebrar está ferrado. Se ele se ferir, está ferrado. Então precisamos fazer uma regulamentação que garanta o mínimo de seguridade social”, disse o presidente durante entrevista ao Flow Podcast.
Em seu plano de governo, não havia nenhuma proposta concreta sobre a regulamentação, mas no ponto 13, o novo governo propôs “organizar um amplo debate e negociação para a criação de uma nova legislação trabalhista de extensa proteção social a todas as formas de ocupação, de emprego e de relação de trabalho, com especial atenção aos autônomos, aos que trabalham por conta própria, trabalhadores e trabalhadoras domésticas, teletrabalho e trabalhadores em home office, mediados por aplicativos e plataformas”.
Com a posse do novo governo, o tema voltou com toda força e, no início de fevereiro, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, em entrevista ao Valor Econômico, ao ser questionado sobre uma possível saída da Uber do Brasil, caso seja criada uma regulamentação que não agrade, respondeu que poderia pedir aos Correios a criação de um novo app para substituir a multinacional norte-americana. A frase logo foi replicada em diversos sites e canais sobre o assunto.
Em nota ao 55content.com.br, os Correios afirmaram que, no momento, não possuem nenhum projeto em andamento para atuar em plataformas de mobilidade de pessoas. No entanto, não descartaram um projeto futuro. “Sendo a maior empresa de logística do país, estamos atentos às mudanças do mercado e sempre a postos para operar com novas soluções logísticas que agreguem valor às pessoas e negócios. A lembrança dos Correios mostra a respeitabilidade desta empresa como grande operador logístico”.
O que está por trás da frase?
Durante os debates sobre novas regulamentações em alguns países, a Uber chegou a alertar ou até mesmo encerrar suas operações temporariamente. Na Colômbia, por exemplo, o aplicativo ficou 20 dias fora do ar após a Superintendência da Indústria e Comércio (SIC) do país considerar que a Uber violava as regras de concorrência. A empresa adaptou seu modelo e passou a oferecer um serviço de aluguel de veículos com motorista, em que o app serve como um contrato entre as duas partes.
Durante a entrevista ao Valor Econômico, o ministro citou o exemplo da Espanha, onde, segundo ele, a Uber havia ameaçado sair do país e voltado atrás na decisão. Em resposta, a empresa disse que nunca saiu da Espanha e que opera até hoje no país, alertando o governo local sobre os impactos negativos da regulamentação.
Ao redor do mundo, lugares como o estado da Califórnia (EUA) e cidades de Londres realizaram regulamentações em que foi reconhecido o vínculo entre motoristas e plataformas. Na capital inglesa, os motoristas ganharam direito a um salário mínimo, férias remuneradas e previdência com a participação da empresa de aplicativo.
Ao ser questionada se as plataformas pretendem deixar o Brasil caso ocorra uma nova regulamentação e como pretendem participar do processo, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que reúne as principais plataformas do setor, como Uber e 99, não quis se pronunciar.
E a que pé está a regulamentação no Brasil?
Apesar das discussões, ainda não há nada definido sobre uma nova regulamentação no país. Segundo o ministro, o desejo é ter algo pronto ainda no primeiro semestre, mas antes será realizado um Grupo de Trabalho. “Não haverá canetada do governo. Temos o desafio de entregar salário mínimo, alternativas em relação aos trabalhadores de aplicativos e da legislação trabalhista e sindical. Não temos a preocupação de ter o código de trabalho inteiro”.
Em nota, o Ministério do Trabalho e Emprego explicou que o Grupo de Trabalho está na fase de ouvir todos os representantes sobre esse assunto. “Seguimos formatando o Grupo de Trabalho que representará os trabalhadores e empregadores para que se possa criar um ambiente de negociação. Nos próximos dias, será encaminhada ao governo a formatação do estudo, critérios de representação dos trabalhadores, das empresas e do governo”.
No legislativo, alguns projetos de lei já correm pelas casas, inclusive de lideranças do atual governo, o que pode dar um indicativo sobre o caminho que a nova regulamentação pode tomar.
É o caso do PL 3570/2020, do senador Jacques Wagner (PT-BA), líder do governo no Senado Federal. O projeto de lei apresentado pelo senador cria a Lei de Proteção dos Trabalhadores de Aplicativos de Transporte Individual Privado ou Entrega de Mercadorias (LPTA), incluindo o direito de associação, sindicalização e cooperativismo, acordos coletivos para estabelecer valor mínimo por hora de trabalho, negociação de benefícios como auxílio alimentação e transporte, fornecimento de equipamentos de proteção individual e seguro de acidentes pessoais, inscrição dos motoristas na Previdência Social, transparência no cálculo da remuneração, possibilidade de revisão humana para todas as decisões automatizadas relativas à remuneração do motorista, entre outras medidas. O projeto prevê também um desconto de 5% no faturamento das empresas para financiamento do seguro desemprego e outras ações sociais de proteção dos trabalhadores.
De acordo com a assessoria do senador, ainda não houve despacho interno sobre o assunto para definir se o projeto será levado em consideração no debate sobre a nova regulamentação.
Durante um evento, o ministro Luiz Marinho disse que a regulamentação deve ser realizada ainda no primeiro semestre do ano e que o governo estuda se ela será feita via medida provisória ou por projeto de lei.