Marcelo de Jesus Carvalho atua como motorista de aplicativo desde 2017, em Porto Alegre (RS), e desde 2018 produz conteúdo online sobre o trabalho nesse setor. Ao contrário da maioria dos influenciadores, ele faz questão de mostrar a realidade e não tem receio de criticar ou expor suas opiniões.
Marcelo, além de conciliar o trabalho CLT com a renda extra no aplicativo, luta pelos direitos e seguranças dos motoristas, através das redes sociais, e afirma ainda: “Me candidatei a vereador na última eleição, cansado de apoiar pessoas que, ao serem eleitas, esquecem dos motoristas”. Ele também afirma que hoje os valores ganhos atualmente não são tão bons porque os motoristas se iludem com o ganho bruto por hora e, por não fazer os cálculos certos, não vêem que compensa mais cobrar o KM por minuto.
Nesta entrevista, o motorista alerta a respeito dos prejuízos do ganho por hora e a importância de não se apoiar apenas na renda nos aplicativos.
Há quanto tempo você é motorista de aplicativo e o que te levou a exercer essa atividade?
Eu vim a convite de um amigo que disse que havia uma forma de conseguir trabalhar e ter um bom faturamento. Nas minhas férias do trabalho fixo, experimentei e acabei gostando. Percebi que dava para ganhar mais do que no meu emprego anterior. Então pedi demissão e comecei a trabalhar com os aplicativos. No início, usei carro alugado, depois comprei meu próprio veículo, instalei GNV e passei a trabalhar com a Uber e a 99. Estou nesse ramo desde 2017.
Você lembra da sua primeira corrida, dos seus primeiros trabalhos? É diferente agora?
A primeira corrida foi bem diferente do que é hoje. A gente ficava muito eufórico com a ideia de ganhar dinheiro sendo o próprio chefe, fazendo os próprios horários. Na época, não havia muitas informações. Fui aprendendo com quem começou antes e acompanhando canais como o do Fernando Floripa, Marlon do Uber, Thomas — que é aqui da minha cidade — e o Marcelo Fora da Curva. Assistia aos vídeos deles e ia aplicando no dia a dia.
Na época, as plataformas mostravam só o local de embarque; o destino do passageiro só aparecia depois. Porto Alegre vivia uma crise grave de segurança pública em 2018. Havia muitos assaltos e violência contra motoristas. Fizemos manifestações. Após o assassinato brutal de um colega, conseguimos que a Uber marcasse áreas de risco, onde as corridas ficavam bloqueadas das 22h às 6h. Também conseguimos reduzir o tempo de espera: aqui foi o primeiro lugar a aplicar o limite de 3 minutos, depois virou 2 minutos.
Outra vitória foi pedir que os motoristas tivessem a opção de escolher pagamento por dinheiro ou cartão — algo que a 99 já permitia, junto com o aviso prévio de áreas de risco (embora ela não bloqueasse essas áreas como a Uber). Hoje a violência diminuiu um pouco, mas o cuidado continua essencial.
Em 2019, levei um tiro na cabeça durante uma corrida. O passageiro havia ido até casa buscar dinheiro e, quando voltou, fomos rendidos. Na hora que fui baixar o vidro, um dos assaltantes disparou. A bala ricocheteou na minha testa, mas consegui dirigir até o hospital.
Desde então, venho lutando por mais segurança e melhores condições para os motoristas. Já fazia parte de manifestações com associações e sindicatos, e me posicionei contra propostas que não beneficiariam os motoristas, como uma taxa que a prefeitura tentou implementar. Comecei meu canal em 2018, incentivado pelo Thomas, para mostrar ganhos e estratégias. Com o tempo, passei a denunciar a queda dos valores.
Fui um dos primeiros a falar sobre a importância de calcular o valor por quilômetro e por minuto, em vez de se guiar apenas pelo valor por hora — como a Uber prefere. Em 2019, os influenciadores começaram a divulgar esse modelo da Uber, o que diminuiu nossa remuneração.
Hoje, o motorista ainda foca no valor por hora e roda 300, 400 até 500 km por dia para faturar R$ 500. Isso é o que a Uber quer: muitos motoristas nas ruas, dirigindo por horas. Mas os custos aumentaram — com combustível, manutenção — e a remuneração caiu. Antigamente, ganhar menos de R$ 2 por km era raro. Hoje, o comum são corridas abaixo de R$ 1 por km, o que é o nosso custo.
Infelizmente, muitos motoristas quebram porque não fazem os cálculos certos, só olham o faturamento bruto. Influenciadores mostram ganhos irreais e acabam funcionando como uma arma da plataforma. A Uber investe muito em marketing, e muitos desses influenciadores ajudam, mesmo sem querer.
Ainda é possível faturar bem em cidades grandes, com custos controlados. Mas mesmo assim, os números caíram. O próprio Ipea dizia que o motorista tirava de 3 a 4 salários mínimos líquidos. Hoje, a média é um salário e meio.
Você falou que já rodou pela Uber e pela 99. Continua trabalhando com as duas ou com mais alguma?
Sim, continuo rodando pela 99. Pela Uber, não mais. Sempre lutei por melhorias na segurança. Mesmo assim, acabei sendo vítima de violência. No episódio do tiro, o passageiro foi buscar dinheiro em casa e, quando voltou, fomos assaltados enquanto eu dava o troco. Ao baixar o vidro, o assaltante enfiou a arma e disparou.
Apesar disso, sigo firme. Esse episódio me deu alcance para falar em grandes emissoras aqui do Sul, como RBS (afiliada da Globo), SBT e Record. Com o tempo, os valores das corridas foram caindo e os motoristas começaram a selecionar mais. A Uber tentou reverter isso com promoções. Como não deu certo, começou a bloquear motoristas.
Em um único dia, bloqueou 1.500 segundo os dados dela, mas os sindicatos falaram em 15.000. Houve protestos. Fui entrevistado pela TVT, uma emissora online, para denunciar os abusos. Em 2021, acabei sendo bloqueado pela Uber por “direção perigosa”. Não havia câmera no carro, o que dificultou a defesa. Hoje em dia tenho câmera e recomendo fortemente que todos os motoristas também tenham — tanto pela segurança quanto para se proteger juridicamente.
A acusação foi baseada na sensação do passageiro, segundo a Uber, mesmo com meu GPS mostrando que eu não estava acima da velocidade. A advogada Sol, bastante conhecida entre os motoristas, tentou me ajudar, assim como o vereador Marlon. Chegaram a tentar reintegrar minha conta, mas eu estava magoado com a injustiça e decidi não voltar.
Depois disso, continuei apenas com a 99, mesmo com as dificuldades. Hoje, concilio um trabalho CLT com a renda extra dos aplicativos. Me candidatei a vereador na última eleição, cansado de apoiar pessoas que, ao serem eleitas, esquecem dos motoristas — como foi o caso do sindicato, que aceitou o que a Uber queria.
Cansado de ouvir “por que você não se candidata?”, resolvi me posicionar. Acredito que faria muito melhor, ou pelo menos não aceitaria certas coisas calado. Hoje sigo com meu canal e continuo lutando pelo motorista da forma que posso.
Você falou que trabalha com CLT. Como você concilia essa rotina? Quantas horas por dia você trabalha no aplicativo? Quais são seus horários?
A situação nos aplicativos é bem complicada, principalmente em relação aos valores. Como comentei antes, a gente até consegue bater metas — seja R$ 400, R$ 500 — mas com quilometragens cada vez mais altas. Com isso, o ganho real diminuiu bastante. Eu, por exemplo, sempre tive como limite não fazer corridas abaixo de R$ 2 por quilômetro. Hoje, a minha régua caiu um pouco: aceito no máximo corridas de R$ 1,90 por km, mas abaixo disso, não trabalho.
Então, o que restou foi conciliar o trabalho CLT com os horários de maior demanda nos aplicativos. Ou seja, uso meu tempo livre — principalmente nos horários de pico, finais de semana e durante eventos — para fazer uma renda extra. Tenho uma estratégia específica: só trabalho em horários que ainda valem a pena aqui na minha cidade. Assim, consigo manter meus ganhos e reduzir os custos.
Quando faço uma meta de R$ 300, por exemplo, consigo manter um custo mínimo, justamente porque seleciono bem as corridas. Como tenho meu CLT garantido, posso recusar o que não vale a pena. Muitos motoristas estão fazendo isso hoje: conciliando trabalho formal com os aplicativos, num modelo híbrido. Isso porque tem horários — como depois das 20h — em que simplesmente não compensa ficar na rua, já que os valores despencam. Nessas horas, é melhor ficar em casa ou até fazer entregas, como alguns colegas fazem. No meu caso, optei pelo CLT.
Então você não tem uma meta diária fixa, por exemplo: “só volto para casa quando fizer tal valor”? Você usa o tempo disponível e, se o horário está ruim, para?
Exato. Minha seleção de corridas é baseada em valor por quilômetro. Dou preferência para corridas rápidas e com melhor remuneração por tempo e distância. A melhor lógica para o motorista, por muito tempo, foi a tarifa base por km e minuto. Com o tempo — e coincidência ou não — os influenciadores começaram a incentivar os motoristas a esquecerem o km e focarem apenas no valor por hora. Isso faz com que o motorista rode muito mais.
Então, quando estou disponível, aproveito o horário em que a demanda é maior — como esse agora, enquanto conversamos, que é quando as pessoas estão indo ou voltando do trabalho. Minha meta hoje é aproveitar esse tempo disponível, mas sempre atento ao valor por km e minuto. Quanto mais rápido e mais bem pago for o percurso, melhor.
E quanto você consegue tirar, em média, por semana ou por mês, num período bom?
Hoje, trabalho com uma meta diária de R$ 200, mas rodando no máximo 100 km. Sempre faço essa conta: quanto faturei versus quantos quilômetros rodei. Se faço R$ 300, tenho que rodar, no máximo, 150 km. No fim de semana, a meta sobe para R$ 400, o que significa rodar até 200 km. Mesmo usando só a 99, tenho conseguido manter essa lógica — embora seja mais difícil trabalhar com apenas um aplicativo quando você seleciona por km e minuto.
E quanto você costuma gastar de combustível? Abastece todo dia? Como faz esse controle?
Sim, abasteço todos os dias. Sempre encho o tanque e uso basicamente um tanque por dia. Meu carro é bastante econômico. Para alcançar a meta diária de R$ 200, gasto em média de R$ 30 a R$ 40 por dia em combustível. Uso o app da 99 para abastecer com desconto. Nos finais de semana, quando a meta é R$ 400 ou R$ 500, o gasto sobe para algo entre R$ 80 e R$ 100.
Você sabe qual é a taxa sobre o valor das corridas?
A 99 aumentou os valores para os passageiros com a promessa de manter os ganhos dos motoristas. A média da taxa que fica para o aplicativo é de cerca de 20%.
Você comentou que prioriza o valor mínimo de R$ 1,90 por quilômetro. Pode falar mais sobre como você calcula isso?
Sim, priorizo sempre corridas que tenham bom valor por quilômetro e por minuto. Fiz até um vídeo explicando isso. A maioria dos influenciadores — o que a gente chama de “influenciadores da positividade” — não fala sobre esses valores. Eles dizem: “faturo R$ 500 e gasto R$ 150”, mas isso porque trabalham por hora, não por distância.
São poucos os que ainda falam em valor por km, como o Cláudio Sena e o Samuel, do canal “Falando de Aplicativos”. Eu gostaria muito que essa matéria alertasse sobre isso: sobre como o foco exclusivo no valor por hora é prejudicial ao motorista. Desde o início, eu alertei que isso traria problemas, e hoje vemos que a Uber se beneficiou disso. Ela padronizou o pagamento por hora e, com isso, os motoristas rodam muito mais.
O valor por km e minuto permite que a gente renda mais. Muitos motoristas ainda não percebem isso. Costumo usar um exemplo simples: se você ganha R$ 60 por hora rodando a R$ 1,50 por km, e outro motorista ganha R$ 36 por hora rodando a R$ 2, qual dos dois lucra mais em 10 horas? No papel, R$ 60/hora gera R$ 600 contra R$ 360, mas o custo do motorista a R$ 1,50 é maior. O motorista que ganha R$ 36/hora com valor mais alto por km tem mais lucro líquido, porque seus custos são menores.
O problema é que muitos motoristas estão iludidos com esse valor bruto por hora. Só percebem a vantagem do km alto em datas comemorativas, quando as corridas pagam melhor — ou pagavam, porque hoje nem o “picolé” (o dinâmico multiplicador) aparece mais. As promoções sumiram porque tem motorista demais nas ruas.
Em dias normais, você faz 10 km e ganha R$ 11 ou R$ 12. Em datas especiais, pode ganhar R$ 30 ou R$ 40 pela mesma distância. A Uber conseguiu, por meio desses influenciadores, implantar essa cultura do valor por hora, e com isso reduziu nosso ganho por km, o que aumentou muito nosso custo de trabalho.
Você ainda indicaria o trabalho por aplicativos para alguém que está precisando de dinheiro, talvez esteja desempregado ou querendo uma renda extra?
Sim. Indicaria como renda extra. Se a pessoa tem um trabalho CLT, não deve largar. O ideal é conciliar. Isso porque, no começo, o aplicativo manda bastante corrida. Quem está começando, normalmente, ganha bem. Aí a pessoa se empolga, começa a trabalhar mais tempo, vê que está ganhando mais, larga o emprego, se endivida em carro… Então, se a pergunta é se eu aconselharia: como renda extra, tranquilo.
Agora, viver dos aplicativos depende muito da região. Em alguns lugares, simplesmente não dá. Tem gente que acaba morando dentro do carro. Já vi reportagem com motorista dormindo no carro. Aí aparecem relatos como: “tô fazendo R$ 10.000 por mês”, “tô fazendo R$ 15.000 por mês”. Mas quanto ele rodou para isso? Quanto sobra de verdade no bolso? E a saúde mental desse colega?
Porque é fácil dizer: “tô faturando alto”. Mas tem muito motorista ficando na rua por 12 horas ou mais. E, na verdade, se a pessoa quer viver só dos aplicativos, menos de 12 horas por dia não rende. Você só troca figurinha. Então, tem motorista rodando 14, 15, 16, até 18 ou 20 horas por dia. É insano. Muitos passam a sexta e o sábado direto na rua. Dormem um pouco — aquele intervalo de seis horas que o aplicativo exige — e já ligam o outro, que não tem essa restrição. A vida vira isso.
O motorista precisa ter muito cuidado com isso. Se ele percebe que está patinando, a dica é: volta para o CLT. Usa tua experiência e teu conhecimento como fonte de renda extra, que é o que muita gente tem feito. Não é vergonha nenhuma. Só não pode largar tudo e se jogar de cabeça no aplicativo.
E hoje, para piorar, houve uma “renovação da esperança”, que na prática foi muito boa para a plataforma, mas nem tanto para os motoristas. Muitos estão desmotivados, cansados, com custos altos — especialmente com o combustível — e mesmo assim trabalhando por horas e não vendo o dinheiro entrar. O estresse bate na família, os carros estão sucateados, porque não dá para fazer manutenção, não tem peça, não tem recurso.
Aí apareceu a “solução mágica”: carro elétrico. Que, de fato, é um baita carro. Se o motorista puder, deve buscar o melhor para trabalhar. Só que os ganhos não acompanham o valor e o investimento necessário para ter um carro desses. Aí acontece o quê? Muitos se endividam, vendem o carro para conseguir um elétrico, achando que vão economizar com combustível e manutenção. Isso ajuda a Uber, porque renova a frota, e dá uma esperança para o motorista: “agora vai!”. E realmente, se tiver energia fotovoltaica, o custo com recarga cai bastante. Mas, para quem depende de carregar na rua e tem que pagar por isso, pode acabar saindo mais caro do que rodar com GNV.
E o carro elétrico, como falei, é caro. Tem motorista assumindo parcelas de R$ 5.000, R$ 6.000 por mês — seja comprando ou alugando — para fazer corrida de R$ 5,88. É absurdo. Isso virou uma nova ilusão, como foi com os ganhos por hora.
E aí de novo, os influenciadores — por coincidência ou não — ajudaram a empurrar essa ideia. Falando das vantagens, incentivando os colegas a irem para esse lado, sem falar dos riscos reais.
O motorista que está se sentindo sobrecarregado, cansado, sem ver retorno, precisa parar e fazer uma planilha. Avaliar seus custos com clareza. Ver os prós e contras. E, se tiver que voltar para a CLT, que volte sem medo. Não é demérito nenhum.
Já vi homem chorar porque não tá conseguindo levar dinheiro pra casa, com o carro em busca e apreensão, desesperado. A locadora manda mensagem dizendo que se o valor não cair até tal hora no dia seguinte, vai bloquear o carro — e elas bloqueiam mesmo. Esses motoristas me procuram. E aí tu sente a dor deles, sabe? Tu sente de verdade. E a gente tenta fazer algo, tenta acreditar que as coisas podem melhorar, que as plataformas vão olhar mais pelos motoristas e melhorar os ganhos.
Então a gente tenta fazer a nossa parte. Alertar. Tenta melhorar. Mostrar para as plataformas que é preciso valorizar quem está na rua, quem movimenta o sistema.
Sempre digo: pessoal, olha para essa realidade com cuidado. Dá um passo atrás. Espera para trocar de carro. Não vai largando tudo, chutando o chefe, achando que os aplicativos vão resolver tua vida.