Evandro Hering, motorista de aplicativo há mais de seis anos na região de Porto Alegre, compartilha nesta entrevista sua trajetória marcada por superação, crítica ao modelo dos apps e busca por autonomia financeira. Com uma rotina intensa e visão realista sobre o mercado, ele fala sobre os limites do trabalho por aplicativo, o risco de dependência emocional e a importância de diversificar a renda. Evandro também revela como a venda de perfumes transformou sua rotina e reforça o alerta sobre a chegada dos veículos autônomos e a urgência de se preparar para o futuro.
Como é sua rotina atual com os apps? Qual horário você costuma trabalhar? Você tem metas diárias ou dias de folga?
Evandro: Já testei praticamente todos os horários de trabalho nesses anos, exceto a madrugada. Nunca fui de virar a madrugada dirigindo, apesar de saber que é um horário muito bom para corridas — com trânsito livre e mais fluidez. Mesmo com notícias sobre riscos, a gente consegue avaliar bem as corridas e evitar situações perigosas.
Até recentemente, minha rotina era do meio-dia à meia-noite, direto, sem pausas. Com isso, eu rodava entre 200 a 300 km por dia e faturava em média R$ 400. Como moro em uma região mais afastada da área metropolitana, acabo pegando algumas corridas com rendimento por quilômetro mais baixo.
Percebi que o horário entre meio-dia e 17h não estava compensando, então mudei minha rotina. Hoje, trabalho online com vendas no computador até umas 17h e depois vou para a rua, dirigindo até meia-noite. Com essa mudança, passo a faturar entre R$ 250 e R$ 300 por dia. Mesmo trabalhando cerca de 4 horas a menos, meu faturamento caiu apenas R$ 100 a R$ 150, o que mostra que a troca valeu a pena.
Sobre as folgas, elas são bem ocasionais. Antigamente, trabalhava de 60 a 70 horas por semana e folgava, eventualmente, às terças-feiras da terceira e quarta semana do mês. Tenho quatro filhos, então mesmo trabalhando bastante, consigo passar as manhãs com eles e estar presente no almoço. Isso me dá tranquilidade, e não sinto tanta necessidade de parar para descansar. Quando a família tem algum compromisso, como amanhã, que vamos comemorar o aniversário do meu filho no shopping, a gente tira o dia. Se der vontade de trabalhar à noite, tudo bem. Se não, tudo certo também.
Vi no seu Instagram que você trabalha com a venda de perfumes. Quando começou e isso tem feito diferença no seu faturamento mensal?
Evandro:Sim, essa atividade mudou completamente minha perspectiva de vida. No início da minha carreira como motorista, havia o status de “motorista diamante”, que dava 20% a mais por corrida — era muito rentável. Mas com o tempo, os ganhos diminuíram, as tarifas não foram reajustadas e a inflação aumentou muito.
Em 2018, R$ 300 eram suficientes. Hoje, mesmo com o dobro, muitas vezes não consigo cobrir todos os custos. Além disso, minha família cresceu — temos quatro filhos — e o custo de vida subiu bastante. Atualmente, um motorista que trabalha como eu, fazendo 60 horas por semana aqui na região do Vale dos Sinos (área metropolitana de Porto Alegre), consegue faturar pelo menos R$ 10.000. Com cerca de R$ 4.000 de despesas, sobra R$ 6.000 — só que isso não era mais suficiente para mim.
Comecei a buscar formas de aumentar meu ganho por hora. Uma alternativa era mudar para Uber Black, mas meu carro, um Versa 2013, deixou de atender os requisitos do Comfort. Foi aí que conheci o Matheus, de Goiânia, do perfil “Uber Loja Matheus” no Instagram. Ele já trabalhava há 3 anos vendendo perfumes enquanto dirigia, e percebi ali uma grande oportunidade.
Mesmo sendo tímido, resolvi investir. Levei 30 dias para juntar os R$ 1.000 iniciais. Nos 30 dias seguintes, vendi tudo e ainda tive R$ 400 de lucro. Isso é padrão para quem se dedica. Sempre digo para quem quer começar: “Se quiser faturar como eu, tem que trabalhar como eu.”
Tenho um colega que fatura de R$ 4.000 a R$ 6.000 só com a lojinha e lucra entre R$ 2.000 e R$ 3.000. Eu, atualmente, tiro entre R$ 700 e R$ 800 de lucro por mês. Isso transformou não só minha rotina como motorista, mas também abriu portas para eu começar a produzir conteúdo na internet. Meu Instagram é @ouberdosperfumes Hoje, meu objetivo é me tornar um vendedor de perfumes, oferecendo não só os da marca atual, mas também perfumes originais — ampliando o serviço de vendas.
Comecei com a lojinha em novembro. Em novembro e dezembro, faturei R$ 1.400 em cada mês. Em janeiro, o mesmo. Agora, em fevereiro, março e abril, estou faturando R$ 1.600 por mês.
Você aumentou as vendas da lojinha. O que mudou? Colocou mais produtos?
Evandro: Na verdade, não. Eu até diminui a variedade de produtos na minha loja. O que mudou foi a minha experiência na abordagem com os passageiros. Antes, a lojinha se vendia sozinha: ela é iluminada, bonita e fica visível durante toda a viagem. Muitos passageiros comentavam: “Ah, que legal, já vi no TikTok” ou “Nunca tinha visto, é o primeiro Uber assim que pego.”
A partir disso, eu introduzo o tema dos perfumes: “Estão aqui abertos para você experimentar, fique à vontade.” Hoje, dependendo do meu humor, já inicio com: “Seja muito bem-vindo! Você está em uma loja em movimento. Os perfumes estão disponíveis para experimentar. Você pode sair mais cheiroso do que entrou.” E aí começa o trabalho de vendedor.
Já entrei em dois Uberes que tinham essa lojinha. Um deles vendia até cigarro eletrônico.
Evandro: Sim, mas é importante dizer: isso é proibido. No nosso grupo de motoristas com lojinha, a gente é orientado a não vender esse tipo de produto, até porque é ilegal e faz mal à saúde.
Você está no aplicativo desde 2018. Como você compara o cenário daquela época com hoje? As taxas, custos, ganhos?
Evandro: Concordo com o que muitos motoristas falam: os nossos ganhos brutos continuam praticamente os mesmos. Não houve correção. Com mais experiência e maior demanda, até faturamos mais. Mas a economia está debilitada.
A Uber, por exemplo, declarou que quer ser o aplicativo de mobilidade mais barato do mercado. Com isso, nossas taxas continuam baixas. Hoje, se eu abrir meu app, minha taxa de aceitação é de 1% a 4%. Desde que mudaram para o sistema de 100 corridas, nunca mais passei dos 10%. Não aceito corrida de R$ 5,88 para movimentar meu carro de R$ 35.000, ainda mais com o risco envolvido.
Atualmente, trabalho mais com a 99 e nos horários de pico, à noite, porque o retorno por hora é melhor. Eu era 100% dependente dos aplicativos até novembro de 2024. Depois disso, passei a faturar mais com a loja e busquei novas alternativas.
Você tem produzido conteúdo online também, certo?
Evandro: Sim! Comecei meu perfil no Instagram em novembro. Produzi conteúdo em dezembro e, a partir de fevereiro, estou engajado diariamente. Já estou perto de bater 2.000 seguidores e continuo crescendo. Estou impulsionando publicações e meu objetivo é ser reconhecido na minha região como vendedor de perfumes.
Quero que as pessoas me chamem para entregar perfumes — e, se necessário, aproveito para fazer uma corrida no caminho. Não compensa mais depender só dos aplicativos.
Você é seletivo nas corridas que aceita? Tem uma taxa de aceitação baixa?
Evandro: Sim. Como mencionei, minha taxa de aceitação está em 4%. Inclusive, posso te mandar uma foto, se quiser. Apesar disso, mantenho minha nota em cinco estrelas desde que comecei.
Você trabalha na região de Porto Alegre, certo? Ainda fatura cerca de R$ 10.000 por mês, com R$ 4.000 de custo e R$ 6.000 de lucro, trabalhando 60 horas semanais?
Evandro: Sim. Até pouco tempo, mesmo com a piora nas últimas semanas do mês — que vêm sendo cada vez mais difíceis —, eu faturava cerca de R$ 2.000 por semana. A queda recente se deve ao fato de que estou ficando mais em casa.
Minha forma de protestar contra os apps é não abrir o aplicativo. Prefiro buscar alternativas. Tenho os perfumes, minha página no Instagram, e agora também criei um e-commerce. O link da loja está no meu perfil. Além disso, estou trabalhando com outro influenciador, vendendo o curso dele. A cada dois ou três dias, faço uma venda que cobre o que deixei de ganhar dirigindo.
Ainda assim, daria para faturar bem se você estivesse 100% na rua?
Evandro: Sim, com certeza. A gente sempre lembra do “método Thomas”, como chamamos aqui: 10 horas de trabalho, R$ 100 de combustível, R$ 300 de faturamento — você leva R$ 200 para casa. Hoje, dá para fazer até R$ 400 com essas 10 horas. Mas são 10, 11, 12 horas online, e a maioria dos motoristas desiste antes.
Recebo muito feedback negativo nas redes sociais, mesmo tendo uma audiência pequena. Muitos motoristas estão desanimados porque realmente está difícil. Mas quem tem uma causa para defender — como eu, que tenho esposa e quatro filhos — se adapta.
Tenho colegas que trabalham só de madrugada. É isso: precisamos nos adequar. Trabalhamos em uma plataforma que exige aprendizado constante. Todo dia é um novo desafio.
Na sua opinião, quais são as melhores e as piores corridas? Você tem alguma preferência entre curtas e longas?
Evandro: Se for para pensar numericamente, é difícil definir com precisão, mas vou te dar uma base. Corridas curtas só valem a pena se pagarem pelo menos R$ 1,80 por quilômetro e no mínimo R$ 40 por hora. Abaixo disso, não dá para trabalhar — seria praticamente um trabalho voluntário.
Tem gente que diz: “Peguei uma caridade”, sabe? Tipo aquelas corridas a R$ 1,10 por quilômetro e R$ 60 por hora. Isso só compensa se for com um carro quitado, econômico, trânsito livre… ou seja, uma situação bem específica.
Muita gente quer uma fórmula pronta, mas ela não existe. Tudo depende do seu humor, da sua disposição, do horário que está trabalhando. Às vezes, eu preciso ir para Porto Alegre e aparece uma corrida pagando R$ 1,10/km e R$ 50/hora. Eu aceito, porque preciso me deslocar. Se não aceitar, não chego lá e fico preso em uma região que não toca.
Hoje, acabo fazendo mais corridas curtas porque estou vendendo mais com elas. Na 99, essas curtas estão pagando de R$ 2,00 a R$ 4,00 o quilômetro nos horários de pico. Então, não faz sentido aceitar algo da Uber que paga bem menos. Deixo o app da Uber ligado só pelo prazer de recusar.
Hoje em dia, trabalhando menos com os apps e com outras fontes de renda, quanto você consegue faturar só com o aplicativo? E quanto disso é lucro?
Evandro: Deixa eu conferir aqui… Vamos pegar o último mês. Às vezes, nem acompanho direito mais. Só vou pagando as contas conforme o dinheiro entra.
(Abre o aplicativo)
Aqui está. Em 2024, até março, tenho os seguintes dados:
- Janeiro: R$ 10.000
- Fevereiro: R$ 10.000
- Março: R$ 10.000
Ou seja, mesmo trabalhando menos, continuei com faturamento de R$ 10.000 mensais. Em 2023, fechei o ano com R$ 115.000 no total — desses, cerca de R$ 100.000 foram para mim, direto. O aplicativo ainda coloca os descontos dados aos passageiros na nossa conta, então o valor real que sobra poderia ser maior.
Mas é como eu sempre digo: não tem como ser diferente. Eu tenho quatro filhos. Não posso agir de outra forma. Eu vou para a rua como quem vai para a guerra. Se eu não “trouxer as cabeças”, como costumo brincar, eu não consigo alimentar os meus porquinhos aqui em casa.
Evandro, estou finalizando. Tenho mais umas duas ou três perguntas. Na sua opinião, qual é a maior dificuldade do motorista de aplicativo hoje em dia?
Evandro: A maior dificuldade é que não somos uma massa homogênea. Eu sou muito crítico sobre como os colegas se identificam como motoristas de aplicativo. Muitas vezes, as pessoas não conseguem perceber a si mesmas e suas realidades.
Conheço apenas um motorista que parece estar em uma condição diferente — ele ainda teria como sair dos apps e ganhar o que ganhamos aqui, mas é exceção. Eu, por exemplo, não conseguiria ganhar R$ 10.000 com minha qualificação em nenhum outro lugar. Talvez me prostituindo… mas não é uma opção viável (risos). A gente é assediado todo dia no carro, mas não é isso que quero.
Acho que o principal problema é não reconhecer por que se está fazendo o aplicativo. A maioria começou com a proposta de renda extra. O problema surgiu quando a economia, que sempre nos venderam como “em desenvolvimento”, na verdade se mostrou como uma economia de terceiro mundo — e as pessoas passaram a depender do aplicativo como renda principal.
Para quem tem carro próprio, o app como renda extra ainda é uma excelente opção. Ele paga bem por hora, mais do que muitos empregos formais. Só que o mercado de trabalho brasileiro é muito limitado: o salário mínimo regula tudo e limita os ganhos para baixo. Então, muita gente com baixa qualificação viu no aplicativo uma oportunidade.
À medida que o mercado formal foi expulsando pessoas sem qualificação, elas migraram para os apps. É um trabalho simples, sem chefe, com liberdade. Você comanda seu carro, escolhe onde ir, aproveita a cidade. Eu adorava fazer viagens longas, parar em outra cidade e aproveitar.
Só que o que muitos motoristas não percebem é que foram refugiados do mercado formal. E, por isso, ficam presos nesse ciclo. Já ouvi colegas dizendo: “Se eu sair dos apps, vou fazer o quê?” Essa é uma limitação mental muito forte. Para mim, ser motorista de aplicativo é quase um vício. Eu estou superando isso, mas posso dizer com certeza: quando você não está trabalhando, sente que está perdendo algo, e isso consome por dentro. É triste.
E como todo vício, muitos tentam sair e acabam voltando. Por isso, acredito que o maior problema é não reconhecer suas limitações e ficar mentalmente aprisionado ao aplicativo, sem planejar uma alternativa.
Claro, há exceções. Alguém solteiro, com um filho só, e com uma companheira que também trabalha, pode viver muito bem com os R$ 10.000 que mencionei antes. Mas essa não é a realidade da maioria. Poucos se dispõem a trabalhar 60, 70 horas por semana.
Você tem uma mensagem final para os motoristas de aplicativo?
Evandro: Sim. Que Deus abençoe a vida de todos os motoristas. Nós temos um trabalho muito operacional. Vi um vídeo recente, de madrugada, nos EUA: em um cruzamento com seis carros de app parados, só um tinha motorista dentro. Os outros eram veículos autônomos. Isso está chegando.
A Uber nunca foi um app de transporte — é um app de Big Data. Ela coleta os dados de onde você vai, quando você sai, e vende isso para o mercado. O objetivo é manter você consumindo, sem perceber. Isso vale para todos nós.
Os carros autônomos vão chegar ao Brasil. A Uber tem aval para isso porque não respeita regulamentações. Existe muito lobby. Quando falam em regulamentação, geralmente é porque alguém quer pressionar ou negociar. Isso só muda quando trocam os políticos ou os próprios gestores das plataformas.
Eles vão justificar os veículos autônomos com argumentos como: “Não tem motorista suficiente naquela área” ou “É perigoso à noite, precisamos automatizar”. E aí convencem o governo. Outra justificativa é o preço dos carros, que está cada vez mais alto — o que dificulta o acesso de novos motoristas. A solução que vão propor? Automatizar.
Isso vai se expandir, de forma lenta, gradual, mas inevitável. Por isso, meu recado é: busquem alternativas. A perspectiva para quem depende só do app é ruim. E, apesar disso, mantenham a esperança.
Eu tenho fé. Tenho quatro filhos, e os crio não só para viver nesta terra, mas para serem do céu. Minha esperança é que, mesmo em tempos difíceis, eles saibam se defender e manter a fé, mesmo quando forem provados.