Com sete anos de experiência como motorista de aplicativo na região metropolitana de Goiânia, John Hebert traça um panorama da profissão. Em seu relato, ele expõe o colapso do modelo econômico dos apps de transporte: jornadas que saltaram de 6 para até 14 horas diárias, taxas de repasse que já chegaram a 49% e um retorno financeiro cada vez mais desanimador. John denuncia o descompasso entre tarifas congeladas há quase uma década e custos operacionais cada vez mais altos — uma equação que força muitos motoristas a praticamente pagarem para trabalhar.
Mais do que desabafo, sua fala é um alerta: ele já saiu de grupos de WhatsApp após tentar conscientizar colegas sobre cálculo de custos, reclama da retirada injustificada de seu veículo da categoria Comfort, critica a ineficácia dos relatórios de taxa da Uber e relata situações-limite como ameaças, assédio e até passageiros embriagados destruindo seu carro.
Com uma visão crítica, John defende o respeito ao motorista como prestador de serviço independente, questiona a forma como o governo propõe a regulamentação do setor, e não esconde: já busca alternativas para deixar a profissão. Segundo ele, hoje, dirigir por aplicativos só vale a pena como bico — desde que se saiba exatamente quanto custa cada quilômetro rodado.
Há quanto tempo você é motorista de aplicativo e o que te levou a exercer essa atividade?
John: Eu já vou completar 7 anos como motorista de aplicativo. O que me levou a entrar nessa atividade foi a crise financeira que o Brasil enfrentou, especialmente às vésperas da pandemia. E o que consolidou essa escolha como minha principal fonte de renda foi a própria pandemia. O mercado tradicional entrou em colapso, e ser motorista se tornou uma opção viável diante disso.
Gostaria que você contasse um pouco sobre sua rotina de trabalho. De que horas a que horas você trabalha? Você tem preferência por algum horário? Folga algum dia da semana?
John: Ao longo desses 7 anos, minha rotina mudou bastante. Quando comecei, era possível trabalhar bem menos e ainda assim levantar uma renda semelhante à de hoje. Eu trabalhava 6 a 7 horas por dia. Hoje, para atingir o mesmo valor, preciso trabalhar de 12 a 14 horas diárias, sem interrupções.
Isso acontece porque, anos atrás, o retorno financeiro das corridas era mais satisfatório. A remuneração pelo serviço prestado era melhor. Hoje, o custo operacional aumentou muito, e as taxas cobradas pelos aplicativos também. A Uber, por exemplo, quando chegou ao Brasil, cobrava 8% do valor pago pelo cliente. Hoje, chega a cobrar até 50%.
As tarifas continuam praticamente as mesmas de 7 a 10 anos atrás, enquanto os custos aumentaram com a inflação. Muitos motoristas trabalham mais, ganham o mesmo e ainda têm menos lucro por conta dos custos elevados.
Você é guiado por alguma meta diária de faturamento? Muitos motoristas só voltam para casa depois de alcançar R$ 300, R$ 350 ou até mais. É o seu caso?
John: Sim. A meta padrão para todo motorista sério, que não inventa moda, aqui em Goiânia é de R$ 300 a R$ 350 por dia. Essa é a média de um dia bem trabalhado, se houver boa demanda.
Porém, nos últimos dois anos, tem sido muito difícil atingir esse número. Para você ter uma ideia, enquanto aguardava essa entrevista, fiquei mais de uma hora online sem conseguir nenhuma viagem viável. O custo está tão alto que, muitas vezes, se eu aceito uma corrida, acabo empatando ou tirando do meu próprio bolso para realizá-la.
Motorista de aplicativo não é só alguém com um carro; ele é uma empresa prestando serviço. Seu CPF precisa ser visto como um CNPJ. Infelizmente, muitos ainda não entenderam isso. Tento conscientizar outros motoristas, mas já saí de quatro grupos de WhatsApp por me estressar tentando mostrar a importância de compor custos e calcular despesas corretamente.
Qual cidade você trabalha?
John: Eu sou da região da Grande Goiânia, em Goiás. Atuo em Goiânia e na região metropolitana.
Você faz controle de custos para saber se uma corrida vale a pena? Poderia explicar como calcula isso?
Jonh: Sim, sempre. Muitos motoristas não sabem calcular nem o custo por quilômetro rodado. Eu sou comprador por formação, então aprendi a calcular tudo. Por exemplo, o etanol mais barato aqui está R$ 4,70. Meu carro, um Renault Logan 1.6, faz em média 8,5 km/litro sem ar-condicionado. Isso dá um custo de cerca de R$ 0,58 por quilômetro rodado.
Um colega que tem um Onix 1.0, por exemplo, tem um custo de R$ 0,44 ou R$ 0,45 por quilômetro. Não é uma diferença absurda, mas mostra como cada centavo conta.
Se esse motorista com carro 1.0 aceita uma corrida que paga R$ 1,29 por km, ele tem um ganho bruto de R$ 0,86 por km. Desses R$ 0,86, ele ainda precisa descontar alimentação, seguro, manutenção, etc. O seguro do meu carro, por exemplo, é cooperativa e custa R$ 180 por mês — R$ 6 por dia.
Fora isso, tem troca de óleo, desgaste do carro… Tem motorista que acha que faturar R$ 400 andando 350 km é ótimo, mas às vezes o colega que faturou R$ 250 e rodou só 100 km lucrou mais.
Como você vê o crescimento do número de motoristas e a situação do mercado atualmente?
John: Desde que comecei, o número de motoristas mais que triplicou no Brasil. A Uber hoje tem no Brasil seu mercado mais lucrativo. É o único lugar onde ela pode ficar com até 48% do valor pago pelo passageiro. Em outros países, isso não acontece.
No começo, eu era contra a regulamentação. Hoje, apoio — mas desde que seja bem pensada. O governo atual quer regulamentar focando apenas no que vai arrecadar, não no bem da categoria. Querem tirar 27% do nosso faturamento com imposto, sendo que a maioria dos motoristas nem chega ao teto de Imposto de Renda. Então por que pagar esse teto?
Você é um motorista seletivo com as corridas que aceita, certo? Você adota algum critério baseado em valor por quilômetro? Por exemplo, evita corridas que pagam R$ 2, R$ 1,90, R$ 2,10?
John: Sim, como eu já havia começado a mencionar antes, eu faço meus cálculos baseados no apontador de custos — principalmente no custo do combustível. E mesmo ignorando outras despesas, já dá para ter um número de partida.
Divido meu critério em dois momentos: quando a demanda está baixa e quando está alta (ou seja, nos horários de pico). Meu carro tem custo de R$ 0,58 por quilômetro rodado no etanol. Então, nos momentos de baixa demanda, aceito corridas que paguem no mínimo R$ 1,60 por km. Com esse valor, descontando os R$ 0,58 do combustível, sobra R$ 1 por km, que consigo distribuir entre as outras despesas do dia.
Quando a demanda melhora, passo a trabalhar com piso mínimo de R$ 2 por km — esse, inclusive, deveria ser o valor mínimo aceitável para qualquer motorista, dado o cenário atual de custos. E muitos passageiros me dizem que esse valor é alto para eles, mas eu explico: o problema não é o valor que o motorista recebe, mas a margem que o aplicativo retém.
Mesmo fora do horário de pico, o aplicativo não cobra do cliente menos de R$ 2 por km. Já vi casos de corrida com tarifa dinâmica em que o passageiro pagou R$ 6 por km. Um exemplo: fiz uma corrida para o aeroporto em que o aplicativo cobrou da cliente R$ 23 e repassou para mim apenas R$ 12,80. Ou seja, quase metade ficou com o aplicativo.
Nos horários de pico, além do valor maior, o tempo de execução da corrida também dobra ou até triplica. Isso aumenta o consumo de combustível, o desgaste do veículo e o risco de acidentes. Então, para resumir: meu piso em horários de baixa demanda é R$ 1,60 por km, e em horários de pico, R$ 2 ou mais.
Você trabalha em quais categorias? Uber X, Comfort, Black…?
John: Eu era Uber Comfort até o fim do ano passado. Mas, por algum motivo não explicado, meu carro foi removido da categoria Comfort em ambos os aplicativos. O mesmo carro que rodava como Comfort ano passado agora não é mais aceito.
É um sedã, com bancos de couro e motorização superior — mas tiraram ele da Comfort. Enquanto isso, colocam carros como Argo e HB20 hatch na Comfort. Não dá para entender os critérios.
Hoje, estou rodando apenas pela categoria X na Uber, pelo POP e com algumas entregas no Flash. Inclusive, tenho buscado alternativas para deixar a profissão. Ela já não oferece mais o retorno financeiro que oferecia. Preciso trabalhar jornada dupla, somando CLT e aplicativo, para alcançar o mesmo faturamento que antes conseguia com 6 ou 7 horas por dia.
Alguns motoristas dizem que o ideal seria tratar o aplicativo como renda extra, não como fonte principal de renda. O que você acha disso?
John: Concordo. Mas entendo que muita gente entrou nesse ramo por falta de opção. O desemprego é alto, e muitos que antes ganhavam um salário mínimo agora faturam mais aqui — então acabam achando que estão bem.
O problema é que olham para o faturamento bruto e esquecem que precisam deduzir os custos operacionais. Um exemplo: já estive em rodas de conversa com motoristas no aeroporto de Goiânia, onde apresentei meus números reais. Teve motorista que mostrou a carteira da Uber com R$ 7.000 de faturamento e disse que eu estava errado. Mas ele não tinha descontado quase R$ 4.000 de despesas básicas. O lucro real dele era muito menor.
Na nossa profissão, não temos férias, décimo terceiro, seguridade nenhuma. Se adoecer, o problema é nosso. Se o carro for danificado ou roubado, problema nosso. Já tive passageiras que urinaram no meu carro — sim, duas mulheres — e a Uber apenas reembolsou a lavagem, desde que eu apresentasse nota fiscal. O dia de trabalho perdido? Problema meu.
Você já teve outras experiências desagradáveis com passageiros?
John: Sim. Uma vez, peguei três rapazes do movimento LGBT em Goiânia. Cada um entrou com uma garrafa de cerveja. Antes eu permitia, hoje não mais. Eles começaram a brincar e derramaram cerveja até no painel. Pedi para pararem, e o que fizeram? Derramaram os 3 litros de cerveja no chão do carro. Lavei várias vezes, mas nunca saiu o cheiro. Tive que vender o carro fedendo.
Hoje, me lapidei muito. Sou extremamente profissional e caxias no meu trabalho. Não admito assédio, nem grosseria. Já fui ameaçado de espancamento e morte por passageiros. Mas repito: o serviço prestado é do ponto A ao ponto B. Nada além disso.
É importante reforçar que não existe vínculo trabalhista entre o motorista e o aplicativo. O aplicativo faz questão de deixar isso claro. Portanto, o passageiro está contratando um serviço de um terceiro, e não tem direito de danificar o veículo, ser agressivo, ou impor condições abusivas.
Nós somos prestadores de serviço. E como tal, o respeito precisa ser mútuo. A plataforma se isenta de qualquer responsabilidade em caso de danos ou conflitos — mas o passageiro precisa entender que está lidando com uma pessoa autônoma, uma empresa individual. E o respeito tem que valer para ambos os lados.
Você mencionou o custo com combustível. Você abastece com etanol? Tem ideia de quanto gasta por dia?
John: Sim, eu abasteço com etanol. Gosto de trabalhar com o tanque cheio porque, assim, consigo calcular a média real de consumo por quilômetro. Aqui em Goiânia, o último abastecimento que fiz foi com etanol a R$ 4,64. Meu tanque tem 55 litros e gastei R$ 250 para encher.
Com esse tanque, consigo trabalhar por cerca de dois dias e meio, sem usar muito o ar-condicionado. Desde que meu carro foi retirado da categoria Comfort, praticamente nem uso mais o ar-condicionado — só quando é para o meu próprio conforto. Então, hoje, posso dizer que meu custo diário com combustível gira em torno de R$ 100.
E quanto ao faturamento? Você tem uma média semanal ou mensal de quanto fatura?
John: Tenho sim. Atualmente, ainda não voltei para o mercado formal, apesar de já ter recebido propostas. Isso porque tenho um filho especial, que demanda muito da minha atenção e exige que eu tenha liberdade de horários. Por isso, escolhi e permaneci no aplicativo.
Hoje, meu faturamento bruto semanal gira em torno de R$ 2.000 a R$ 2.500. Claro que há semanas com menor rendimento, quando preciso focar em assuntos pessoais. Por exemplo, na semana passada, faturei R$ 1.490 somando Uber e 99. Já o meu lucro líquido mensal gira em torno de R$ 3.000 a R$ 3.500, depois de descontar todas as despesas.
Você tem ideia da taxa que a Uber desconta das suas corridas no final do mês?
John: Tenho sim. Toda vez que a Uber me manda aquele relatório mensal com a taxa de serviço, eu quase rio. Aquilo é uma falácia. A média que eles apresentam — 20%, 25% — é falsa. Quem tem noção básica de matemática sabe manipular médias. Coloca quatro números altos e um pequeno no meio e pronto, a média cai.
Na prática, a taxa da Uber hoje é de no mínimo 35%, chegando a 49% — já paguei isso numa corrida. Mandei prints dessas viagens para o Cabral, aquele conhecido como “Uber do Cabral”, que recebe relatos de vários motoristas.
Já a 99 trabalha com taxas entre 25% e 35%. Percebo que a taxa maior costuma incidir nas corridas que pagam melhor, muitas vezes em horários de pico. Ou seja, quanto maior o valor que o passageiro paga, maior é a mordida do aplicativo. Inclusive, nas corridas longas, o valor por km é geralmente menor do que em corridas curtas.
Você ainda recomenda essa profissão para alguém que esteja precisando ganhar dinheiro? Que dicas daria para quem está começando?
John: Eu recomendo, sim — mas não como fonte de renda principal. Para quem busca uma renda extra, ainda é viável. A pessoa pode trabalhar com metas flexíveis: fazer R$ 100, R$ 150 por dia, rodando pouco e escolhendo bem as corridas.
Hoje mesmo, sendo minha fonte principal de renda, eu recuso cerca de 450 chamadas por dia. Só aceito o que atende ao meu critério mínimo. Quem trata isso como bico pode ser mais seletivo ainda.
Você tem ideia de quantos quilômetros roda por dia?
John: Tenho. Claro que varia, mas em média rodo 120 km por dia. Em dias bons, quando as corridas estão bem pagas, posso rodar até 200 km e faturar R$ 400 a R$ 450. Em dias ruins, rodo só 100 km ou até menos. Se estiver rodando 100 km para ganhar só R$ 160, prefiro parar — isso significa que estou quase empatando. Então, tudo depende da demanda e da tarifa por quilômetro no momento.
Só reforçar que nossa profissão exige seriedade. Trabalhamos como prestadores de serviço e devemos ser respeitados como tal. Os aplicativos não assumem responsabilidade alguma — não temos férias, 13º, assistência em caso de doença ou acidentes. E mesmo assim, lidamos com situações extremas: passageiros que danificam o carro, comportamento abusivo, etc.
O passageiro precisa entender que está contratando um serviço de um profissional autônomo, e não tem o direito de exigir além do que é contratado: levar do ponto A ao ponto B. Esse respeito é fundamental.
Você falou que não pega mais corridas que podem te causar problemas, como gente bêbada e tal. Imagino que você evite lugares assim. Mas se você chega e vê que a pessoa está com bebida ou alterada, vale a pena cancelar?
John: Então, os aplicativos não cobram dinheiro do motorista pelo cancelamento. O que eles fazem é retalhar através da nota. Eles derrubam sua média de avaliação, e o algoritmo passa a aplicar o que a gente chama de banimento branco: você fica um bom tempo sem receber chamadas, tipo uma meia hora.
Mas aqui em Goiânia e região, o pessoal já está mais educado. Ainda tem uns “rebeldes sem causa”, mas no geral eles respeitam. Por exemplo, deixa eu te mostrar: meu banco do passageiro da frente está rebatido — não levo mais ninguém na frente. Tive muitos problemas, inclusive assédio de homens. Então, depois da pandemia, tomei essa decisão. Hoje só levo na frente em caso de família, quando vejo que é seguro.
Além disso, aqui o pessoal já entende que não pode fumar nem beber dentro do carro. Não deixo de ir a um bar buscar alguém por achar que esteja bêbado, mas se percebo na hora que a pessoa está alterada demais, eu cancelo.
Você pode dar um exemplo?
John: Claro! No fim de semana passado, fui buscar um grupo na região da Baeria, e eles estavam todos bebendo. Quando cheguei, eles mesmos falaram, rindo: “Aguenta aí, motora, deixa eu virar o copo”. Isso parece brincadeira, mas não é frescura. O carro é meu patrimônio, meu escritório. Se ele for danificado, sou eu que pago. Então, sim, prefiro cancelar do que correr risco ou ter prejuízo.
Te contei também de um passageiro embriagado que me ameaçou. A viagem estava no nome da mulher dele, mas ele começou a discutir com ela e queria vir aqui para frente. Eu disse: “Amigo, você vai atrás com sua esposa”. A partir daí ele começou a me ofender, me xingar. Fiz a viagem mesmo assim, pedi para a esposa contê-lo e avisei que, se não se comportasse, eu chamaria a viatura. Ele ficou quieto até o final.
Mas quando finalizei a corrida, ele surtou. Quis partir pra cima. Aí eu disse: “Agora acabou a corrida. Se você quiser brigar, o assunto é outro”. A mulher o retirou do carro, e tudo terminou ali. Mas fica a lição: às vezes é melhor perder um dinheirinho do que se colocar em risco ou ter prejuízo maior. O que parece lucro pode acabar sendo prejuízo.