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“As plataformas vendem autonomia, mas entregam controle”, afirma especialista sobre trabalho de motoristas de app

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Entrevista
Conversas com especialistas, gestores e profissionais do setor, com perguntas conduzidas pela equipe do 55content.
Henrique Amorin e Felipe Bruner. Foto: Reprodução/ Arquivo pessoal.

Especialistas destacam como o gerenciamento algorítmico impõe regras rígidas aos motoristas, revelando uma autonomia mais ilusória do que real.

Felipe Bruner, doutorando em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), desenvolveu um artigo em parceria com Henrique Amorim, sociólogo e professor da UNIFESP. No texto “Trabalho por aplicativo: gerenciamento algorítmico e condições de trabalho dos motoristas da Uber”, os pesquisadores abordaram as relações de trabalho entre plataformas de corrida e motoristas de aplicativo.

Para isso, foram analisados os gerenciamentos algorítmicos dessas empresas de transporte e como se dá a relação de autonomia versus controle que se materializa nessa forma de trabalho.

O professor, que já trabalha com pesquisas sobre apps de transporte há seis anos, explica que não se trata de um trabalho por aplicativo, mas via aplicativo, fundamentado na relação entre plataformas digitais e trabalhadores.

Além disso, Henrique destaca o discurso da classe de motoristas sobre a autonomia de horários, com maior flexibilidade, mas aponta: “Por trás dessa autonomia aparente, o trabalho é controlado. A empresa determina quem recebe cada corrida, quanto cada corrida vai custar, o trajeto que o motorista deve seguir, e, se ele se desvia desse trajeto, pode ser penalizado. Ou seja, não é simplesmente ligar o aplicativo e trabalhar do jeito que quiser”.

E ainda desenvolve que o trabalhador depende de uma série de condições impostas pela empresa e, se não as seguir, “pode ser suspenso ou até expulso da plataforma”.

Ele também conta que, mesmo que esse trabalhador tenha essa flexibilidade para escolher quando trabalhar, se ele não trabalhar, ele não ganha nada: “Então, o trabalhador é pressionado a maximizar o tempo que está conectado”.

Como se dá essa relação de trabalho entre grandes plataformas e motoristas?

Henrique responde: “A empresa gerencia esses trabalhadores e impõe regras de como eles devem executar o trabalho. Se não fizerem conforme as normas, eles enfrentam punições. Não há negociação de salário ou condições. A autonomia é muito superficial.

O trabalhador parece ter o controle, mas, na realidade, é gerenciado em tempo real por algoritmos, que estabelecem condutas e consequências. Se ele para de trabalhar por dois dias e volta no terceiro, o sistema o penaliza de alguma forma. Assim, a autonomia é mais uma ilusão do que uma realidade.

Esse debate sobre autonomia é muito complexo. Não é uma discussão fundamentada apenas na aparência, mas também em como isso opera no dia a dia do trabalhador. As empresas atraem trabalhadores com a ideia de flexibilidade e autonomia, mas, na prática, oferecem um trabalho sem vínculo empregatício, sem direitos e sem garantias.

A adesão ao trabalho não é uma escolha real para a maioria, mas uma necessidade, diante da falta de emprego formal. Isso cria uma grande massa de trabalhadores que se submetem a essas condições, porque precisam sobreviver, pagar aluguel, alimentar a família.

Além disso, as plataformas externalizam custos que antes eram responsabilidade das empresas tradicionais. O trabalhador paga pela manutenção do veículo, combustível, seguro e não tem garantia de aposentadoria ou assistência caso adoeça ou sofra um acidente. No final, o trabalhador pode até ganhar mais do que em um emprego formal em termos brutos, mas precisa arcar com todos esses custos, o que, a longo prazo, resulta em mais precarização.

Essa aparente autonomia precisa ser relativizada. No interior do processo de trabalho, a empresa impõe regras claras e não há liberdade real. O trabalhador precisa trabalhar porque sua situação de vida o exige. Muitas vezes, ele sacrifica seu tempo livre, que poderia ser usado para atividades culturais ou lazer, para se dedicar ao trabalho. E, mesmo dentro do trabalho, ele é constantemente vigiado e controlado pelo algoritmo, que define rotas, corridas e até as chances de ser banido. Esse controle é muito mais intenso do que em trabalhos coletivos de duas décadas atrás”.

Adicionando ao discurso de seu orientador, Felipe completa dizendo que, embora, individualmente, alguns trabalhadores possam ter melhorado sua renda, “a lógica geral do trabalho piorou”.

Para ele, muitos precisam trabalhar mais horas para ganhar o mesmo ou menos do que antes. Além disso, a quantidade de motoristas aumentou, criando mais concorrência interna: “Isso reduz os ganhos de todos. É uma exploração mais intensa e eficaz, promovida pelas plataformas”.

Como se dá o processo de radicalização do trabalho por app?

“As tecnologias desenvolvidas não têm o objetivo de facilitar a vida dos trabalhadores, mas de explorá-los melhor. As plataformas digitais tornam possível extrair mais valor do trabalhador em menos tempo, aumentando a produtividade de maneira controlada. Isso não é algo novo, mas uma continuidade do que o capitalismo sempre fez: usar tecnologia para intensificar a exploração”, explica Felipe.

Antigamente, ser motorista de aplicativo era visto como um complemento de renda. Hoje, para muitos, é a única fonte de sustento. Como vocês enxergam essa transição e o impacto disso no mercado de trabalho brasileiro?

“Quando a Uber chegou, muitos dos primeiros motoristas eram profissionais experientes que migraram para a plataforma por melhores ganhos. Mas, com o tempo, o perfil mudou: a maioria passou a ser composta por desempregados ou pessoas buscando um sustento imediato.

E isso criou um cenário onde, para muitos, a plataforma se tornou a única opção de trabalho. Isso piorou as condições, porque mais motoristas significa mais competição e menos ganhos individuais. Antes, um motorista podia trabalhar cinco horas por dia e sustentar sua família. Hoje, precisa trabalhar 12 horas ou mais para alcançar o mesmo resultado. Essa transição impactou profundamente a forma como pensamos o trabalho”, conta Bruner.

Qual é a conclusão de vocês e as expectativas para o futuro do trabalho por aplicativo no Brasil?

“De fato, pouca coisa mudou. O modelo se expandiu para além de motoristas e entregadores, atingindo diversas áreas, como limpeza e cuidados. Isso mostra que as plataformas estão cada vez mais integradas a diferentes profissões. Apesar disso, não é possível prever com certeza o futuro. Tudo depende de como os trabalhadores se organizam, de mudanças na legislação e da resistência contra esse modelo de trabalho”, diz Felipe.

“A tendência é que as plataformas continuem crescendo e explorando mais profissões. Se não houver resistência, a exploração se intensificará, e os direitos dos trabalhadores continuarão sendo corroídos. O futuro depende muito de como a classe trabalhadora e a sociedade vão reagir a isso”, finaliza Henrique.

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